O presente artigo, que apresento ao povo brasileiro é um antítese: uma crítica respeitosa ao artigo publicado no Estadão, pelo professor Miguel Reale Jr.
A íntegra do texto do festejado jurista encontra-se abaixo. É importante ser lida.
O artigo dele se chama Renúncia já.
O meu, Impeachment Já.
Link do texto do professor
Agora, meu texto.
Outro ponto de vista: Impeachment já
O douto professor Miguel Reale Jr. em artigo publicado no Estadão, com muita propriedade, expôs sua respeitável tese de que não há amparo no ordenamento jurídico brasileiro para o processo de impeachment da presidente da República.
Com a devida vênia, ousamos divergir do consagrado jurisconsulto e o fazemos pelas seguintes proposições lógicas, alinhavadas doravante. Senão, vejamos.
O argumento expendido no artigo segue premissas, deveras, corretas.
A primeira delas é a de que o processo de impeachment se faz pela conjunção de fatores: apoio na sociedade e de uma coalização político-partidária (raciocínio externado pelo mensaleiro José Dirceu, em entrevista ao programa Roda Viva em junho de 1992, citado no artigo).
Com razão Miguel Reale Jr., quando adiciona a essa argumentação, a necessidade de subsunção do fato delituoso à norma sancionadora, sem o que não seria possível o impeachment.
É dizer, há um processo jurídico que deve ser observado que é justamente o enquadramento de uma ação ou omissão, por parte do Presidente da República, em um dos tipos elencados na Lei de Crimes de Responsabilidade, Lei 1.079/50.
O artigo denuncia uma miríade de fatos e ações que, no entender do subscritor, estariam, em tese, incursos em crimes passíveis de impedimento constitucional.
O normativo que rege a matéria, como dito, é a Lei 1.079/50 que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
A norma jurídica, em seu art. 2º é didática ao prescrever que os crimes ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, por até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República entre outras autoridades.
Esta regra foi recepcionada parcialmente pelo hodierno ordenamento constitucional, uma vez que aumentou a inabilitação para o exercício de qualquer função pública, pelo prazo de oito anos.
Assim, segundo a Constituição não se trata mais de pena escalonada ou variável de até cinco anos, mas de pena fixa que é o afastamento, por completo, da vida pública, pelo prazo de oito anos.
Colocada a questão neste pé, o professor Reale Jr. advoga a tese de que, no seu entender, a responsabilização só se daria, na forma dolosa. Em suas palavras:
“Primeiramente, entendo que as infrações políticas que podem levar ao impeachment são exclusivamente previstas na forma dolosa, ou seja, intencional. Assim, os fatos devem revelar a intenção do governante de não tomar providências em vista da improbidade cometida por subordinados, o que circunstâncias a seguir lembradas podem indicar”.
Apenas para argumentar, as hipóteses de impeachment não se esgotam em atos de improbidade ou de deixar de tomar providências em relação a atos praticados por subordinados ímprobos, como quis parecer o artigo do professor.
Também se configuram crimes, os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Neste ponto, convirjo com a posição do emérito Miguel Reale Jr, quanto à impossibilidade de punição pela forma culposa, ou seja, quando o agente, no caso Dilma Roussef, deu causa a possível crime.
A forma culposa, nada mais é, quando o agente produz resultado ilícito delitivo por imprudência, negligência ou imperícia. Aliás, predicados que lhe descrevem muito bem.
Contudo, é de bom alvitre, preliminarmente, destrinchar o que vem a ser dolo. Fato este, que com a devida vênia mereceria uma melhor explanação pelo professor.
Este elemento se consubstancia na vontade livre e consciente de praticar o ilícito, o crime. Essa vontade pode se dar de forma direta, quando o agente quer produzir o resultado criminoso, ou na modalidade denominada de dolo eventual.
É aqui que o leitor deve se atentar. Prestar muita atenção. O dolo eventual se dá quando o agente, nada obstante não ter a intenção de produzir o resultado criminoso, assume com o seu comportamento, o risco de produzi-lo.
Um exemplo bem elucida as duas modalidades de dolo.
O dolo direto: o cidadão pega sua arma de fogo e alveja o seu desafeto com vários tiros.
O dolo eventual: o médico plantonista está dormindo e é acordado pela enfermeira, alertando-o de que há um paciente grave, que merece atendimento. O médico, ao invés de prestar o auxílio, prefere dormir. É certo que ele não tem a intenção de matar o paciente, mas assume este risco.
Se o paciente morrer, o médico irá responder por homicídio, na modalidade dolo eventual.
Na visão do jurista, segundo infere-se do seu texto, os crimes de responsabilidade só seriam passíveis de punição na forma dolosa e, ao que parece na exclusiva e específica modalidade do dolo direto (quando o agente quer praticar o crime “intencionalmente”, segundo redação posta pelo próprio subscritor do artigo).
Data vênia, não há respaldo jurídico nesta tese. É que o código penal é pedagógico, explícito quanto ao que vem a ser dolo. Vejamos:
“Art. 18 - Diz-se o crime:
Crime doloso
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”
Portanto, se só é possível punir o agente por dolo (gênero), logicamente, será possível puni-lo na modalidade de dolo eventual (espécie).
Para ser bastante didático. A presidente da república cochilou? Dormiu? Assim como o exemplo do médico, dado acima?
Bom, se ela não praticou qualquer ato doloso, diretamente, a meu juízo, o fez na modalidade indireta, assumindo o risco de produzir o nefasto resultado danoso ao País.
Há um velho adágio jurídico romano que preleciona que “o direito não socorre aos que dormem”.
Se Dilma não praticou por si mesma os atos, dormiu.
Um presidente da república não pode dormir diante do flagrante, do delito que está nas páginas policiais do Brasil e do mundo.
Não pode dormir com o barulho que vem das ruas desde junho do ano de 2013. Dilma não pode dormir em serviço. Quem dorme em serviço comete crime na modalidade dolo eventual. Assume os riscos de produzir o resultado.
Contudo a questão não se esgota nesta perspectiva penal. É que a questão pertinente à definição da natureza jurídica dos “crimes de responsabilidade” (conceito a que se subsumiriam as infrações político-administrativas) tem suscitado amplo debate de ordem teórica.
Para alguns juristas o “impeachment” constitui processo de cunho político, enquanto que, para outros, de índole criminal (como explicitamente prescrevia a legislação do império Lei de 15/10/1827).
Outros doutos juristas identificam no impeachment, natureza mista, sui generis, é o caso, por exemplo, de PAULO BROSSARD DE SOUZA PINTO, “O Impeachment”, p. 76/88, 3ª ed., 1992, Saraiva e MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/453, 3ª ed., 2000, Saraiva.
Há alguns autores e juristas, como AURELINO LEAL (“Teoria e Prática da Constituição Federal Brasileira”, Primeira Parte, p. 480, 1925) e como parece ser o caso do professor Miguel Reale Jr. e o meu, que qualificam o crime de responsabilidade como instituto de direito criminal.
Mas a tese da natureza penal está bem amparada eis que é a que prevalente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (Pet 1.954/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA), (RTJ 166/147, Rel. Min. NELSON JOBIM – RTJ 168/729, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 176/199, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, v.g.) (Pet 85/DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES - Pet 1.104-AgR-ED/DF, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – Pet 1.954/DF, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, v.g.).
De fato, o Supremo tem assentado que os crimes de responsabilidade, por exemplo, não se enquadram na competência legislativa dos Estados-membros, incluindo-se, ao contrário, na esfera das atribuições legislativas da União Federal, eis que cabe a ela, com exclusividade, criar crimes.
Por esta razão não existem crimes em um Estado da Federação que não sejam crimes em outro Estado da mesma República Federativa do Brasil.
Situação diversa é a que acontece com os Estados Unidos da América, por exemplo.
Bem, colocada a questão de que o crime de responsabilidade tem natureza penal, toda a linha argumentativa, por ora, produzida se concatena com a possibilidade de responsabilização da Presidente da República na modalidade do dolo eventual, diversamente do que advogado pelo eminente professor Miguel Reale Jr., cujo artigo ora se tece uma antítese, por meio de uma crítica respeitosa.
Assim se posiciona o ilustre jurista, após apontar diversos “malfeitos” in verbis:
“Mas mesmo que fique configurada conivência da presidente com os malfeitos, ao deixar sem apuração os desvios ao longo do tempo, tipificando-se, eventualmente, a conduta descrita no artigo 9o, item 3, acima lembrado, todavia, essa omissão dolosa teria ocorrido no período passado. A pena do impeachment visa a exonerar o presidente por atos praticados no decorrer do mandato. Findo o exercício da Presidência, não se pode retirar do cargo aquele cujo governo findou. Diz o artigo 15 da Lei do Impeachment que a denúncia deverá ser recebida se o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado o cargo. E Dilma deixara o cargo de presidente por ter terminado o mandato, tomando posse de outro, que se iniciou em 1o de janeiro com faixa presidencial e juramento”.
Inicialmente não me agrada o vocábulo “malfeito”. As coisas têm de ser ditas pelos seus respectivos nomes. No caso, a palavra é crime, fato típico, ilícito penal, delito. Não há espaço para eufemismos. O Brasil enfrenta grave crise político-institucional e econômica.
Pois bem, o que o professor Reale Jr. diz é que, em tese, a Presidente Dilma só poderia ter sofrido impeachment em relação aos fatos ocorridos no mandato anterior, desde que ela estivesse sendo processada neste mesmo contexto temporal: ou seja, no mandato anterior.
O argumento é frágil e se desmorona ao se destacar argumentos comezinhos de ordem lógico-jurídicas, facilmente identificáveis.
Uma primeira observação a Lei data do ano de 1950, tempo em que não havia reeleição, portanto, sua interpretação literal é rasa e equivocada. No entanto, mesmo quando feita literalmente, chega-se à mesma conclusão, pasmem.
Diversamente do que estampado no arrazoado publicado pelo Estadão, a Lei 1.079/50 disciplina a matéria da seguinte forma:
Art. 15. A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo. (grifo nosso)
Faltou ao texto do eminente professor, a redação completa do texto normativo, omitindo-se o vocábulo “definitivamente”.
Ora, a Lei 1.079/50 foi redigida ao tempo em que não existia a possibilidade de reeleição, como dito. O Artigo 15 é de uma obviedade explícita.
Não há porque processar um Presidente por impeachment que já foi afastado definitivamente do cargo.
A ação não teria um réu, um sujeito passivo. Não haveria presidente a se processar, exatamente porque ele foi afastado definitivamente do cargo, ou seja, já sofreu uma sanção e não o prêmio da reeleição.
A depender das razões, o então ex-presidente da República iria responder pelos crimes comuns, eventualmente cometidos. O que a toda evidência não é o caso da presidente Dilma que não é ex-presidente.
É que Dilma nunca deixou definitivamente o cargo de Presidente, simples assim. Ela foi reeleita para um novo mandato, no mesmo cargo, tendo ratificado os compromissos protocolares de leitura de juramento, posse e entrega de faixa presidencial, o que em momento nenhum quer significar que ela tenha sido afastada definitivamente do cargo (frise-se).
O cargo de presidente, cumpre repisar, à exaustão, para que não pairem dúvidas, nunca esteve vago.
Dilma nunca foi afastada definitivamente do cargo. Ao revés, muito pelo contrário, a etimologia do termo “afastada” já dá a conotação de que teria se submetido ao defesnestramento, por ato involuntário, imposto por outrem.
Ora, Dilma não foi afastada, mas sim, reeleita.
Não há a figura da ex-presidente Dilma. O que há é um Chefe de Estado e de Governo exercendo, no presidencialismo brasileiro, a função pública de autoridade máxima do Poder Executivo Federal que sempre ocupou, seja no mandato anterior, seja no atual.
Não há como compreender de outra forma, com a devida vênia.
Ademais, o raciocínio beira à ilogicidade. O processo de impeachment não é expedito, rápido, feito da noite para o dia. Há de se observar o devido processo legal, com o consequente direito à ampla defesa do acusado. Vejamos o procedimento.
No caso da presidência da República, admitida a acusação contra Dilma, por dois terços da Câmara dos Deputados, será, então, ela submetida a julgamento perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
Caso isso ocorresse, ela ficaria suspensa de suas funções, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
A redação da constituição dá o caminho do processo, de forma simples: se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo. (art. 86)
Portanto, o processo não é simples e pode levar mais de 180 dias, como prevê o próprio constituinte.
Com efeito, não há que se falar em impossibilidade jurídica de processar a presidente da República, em exercício, por atos realizados no mandato passado, como advogada Miguel Reale Jr, até porque o processo pode se arrastar de um mandato para o outro.
Aliás, a corroborar com este entendimento, o próprio § 4º da Constituição Federal prevê que “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
A constituição não discrimina o mandato passado ou atual.
É regra de hermenêutica jurídica: onde o legislador não discriminou, não compete ao intérprete fazê-lo.
Portanto, a imunidade material da presidente, de não poder responder por atos que sobejem, que ultrapassem, o exercício de suas funções, não se confunde com qualquer limitação temporal para que seja processada por crime de responsabilidade.
Pode causar estranheza ao leitor, ao se deparar com a seguinte situação. Suponhamos que um presidente ao ir a uma festa se irrite com alguém.
Após acalorada discussão, o presidente lança mão de uma arma de fogo e mata o cidadão.
O presidente não pode ser processado, enquanto, estiver no cargo de presidente, por este fato. É que o homicídio, nas circunstâncias colocadas no exemplo, refogem ao exercício da função de presidente.
É uma proteção ao Chefe maior do Executivo Federal, para que ele não seja processado por crimes quaisquer, embaraçando-o no exercício do seu elevado mister de conduzir o país.
O exemplo dado é apenas didático, para que o leitor entenda. Jamais suporia que algum Presidente da República pudesse cometer um crime desse jaez.
O professor Miguel Reale debruçou-se no caso e apontou uma miríade de fatos que em tese configurariam crime de responsabilidade. No entanto, ao vislumbrar a tentativa ou a consumação desses crimes no mandato anterior, não vê possibilidade jurídica em seu processamento no mandato atual.
Entendo que além de possível, há outros diversos crimes de responsabilidade cometidos, em tese, pela presidente. Deixarei para decliná-los em uma próxima oportunidade, para que o presente texto não se alongue demasiadamente.
Por fim, registro que o Supremo Tribunal Federal não tem nenhum precedente em relação à tese esposada pelo professor Miguel Reale. Aliás, muito pelo contrário.
Afinal, é bom rememorar que Fernando Collor de Mello, ao sofrer o impeachment já havia renunciado ao cargo.
Ora, se ele havia exercido este direito e mesmo assim sofreu as consequências do impeachment, não será uma reeleição que impedirá o processo de acontecer.
Para concluir, até porque a questão tem suscitado dúvidas, a presidente da república pode e deve ser investigada em relação a crimes comuns, ou seja, aqueles crimes que não estão tipificados na Lei 1.079/50, desde que haja conexão com suas funções de presidente, seja em relação aos crimes do mandato passado, seja no tocante aos do presente mandato.
Não há qualquer necessidade de autorização da câmara dos deputados para que haja investigação. A necessidade de aquiescência da câmara se dá nos estritos limites do art. 51 da Constituição da República, quando aduz que:
Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;
Ao fim e ao cabo, mesmo que Miguel Reale Jr. estivesse com a razão, os crimes de responsabilidade cometidos pela presidente, em tese, estão em continuidade delitiva. Nada mudou. Os processos de corrupção e aparelhamento do Estado estão a cada dia, desde 01 de janeiro em curso.
Seja neste mandado, seja no anterior, o Brasil está em flagrante delito.
Com efeito, mister faz:
Conclamar para que o Excelentíssimo Procurador-Geral da República requisite a instauração de inquérito judicial em face da Presidente da República, ou que o faça de ofício, o Excelentíssimo Ministro Teori Zawaski.
Pugnar, em nome do povo brasileiro que a Câmara dos Deputados delibere os pedidos de impeachment já protocolados em face da Presidente Dilma Rousseff, para que se reestabeleça a ordem constitucional em vigor.
Matheus Faria Carneiro, cidadão brasileiro.
Formado em Direito, Pós graduado em Direito Público, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Civil, Direito Notarial e Registral, Direito Processual Civil e Direito Tributário.
Ex-Chefe do Serviço da Dívida ativa da União em Santa Catarina
Procurador da Fazenda Nacional.
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