Por - iG São Paulo |
Especialistas também afirmam que a experiência internacional dos alunos de graduação agrega pouco à ciência brasileira; na 1ª reportagem da série ´Ciência com Fronteiras´, o foco é o descontrole de órgãos federais responsáveis pela iniciativa.
Após três anos de implementação, o programa Ciência sem Fronteiras (CsF), criado com a meta de enviar 101 mil estudantes ao exterior até 2015 - sendo 65% deles alunos de graduação - funciona sem um indicador de qualidade eficaz e, segundo afirmam os especialistas, contradiz o próprio nome ao não contribuir de forma eficiente e precisa com a produção científica, inovação e o desenvolvimento da ciência brasileira. O foco do programa, criado em 2011, são os universitários das áreas Tecnológicas, de Engenharia e Saúde.
"O Ciência sem Fronteiras repete a praxe brasileira de colocar as ideias em prática antes de criar indicadores precisos que possibilitem a avaliação criteriosa quantitativa e qualitativa da ação", afirma o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Ocimar Alavarse, especialista em avaliação. A USP é a instituição que mais envia alunos pelo programa, são mais de 3,5 mil estudantes com bolsas do Ciência sem Fronteiras implementadas.
A falta de indicadores precisos resvala na própria estrutura de suporte ao CsF. Um relatório feito pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do Ministério da Educação (MEC) que coordena o programa, mostra que o número de técnicos especializados é insuficiente para orientar com qualidade os alunos no exterior.
O documento, ao qual o iG Educação teve acesso, mostra que cada técnico da agência é responsável pelo andamento de mais de 12 mil pedidos de inscrições e pelo acompanhamento de quase dois mil bolsistas. Enquanto o número de interessados no programa saltou de 7 mil para quase 62 mil, de 2011 para 2013, o de técnicos subiu de 3 para 5 no mesmo período. Já a quantidade de bolsistas pulou de 3 mil para 35 mil entre 2012 e o início deste ano. O documento, da própria Capes, é datado de 31 de março de 2014.
Pelos infográficos, confira a evolução na quantidade de técnicos em relação ao número de bolsistas e de estudantes interessados no CsF:
Ainda de acordo com o relatório da Capes, as ações da unidade responsável pela análise de bolsas são "descentralizadas, cada técnico cuida de uma ou algumas ações (há pessoas que cuidam de até oito programas diferentes) do jeito que lhe convém, pois não há normativas, nem padrões de processos ou de documentos".
Sem essa estrutura administrativa e pedagógica (especialmente por parte dos coordenadores de cursos das universidades, segundo mostrarão as próximas reportagens da série), não há um controle sobre o número de créditos que, atualmente, estão sendo realizados pelos estudantes no exterior (há alunos que fazem duas disciplinas durante todo o semestre e viajam o resto do tempo pela Europa ou Estados Unidos; o tema será abordado em reportagem que será publicada nesta sexta-feira).
Também há muitos estudantes que continuam indo para o exterior sem o conhecimento suficiente da língua, problema já identificado anteriormente pelo programa (o tópico, além de outras falhas do CsF desde a sua criação, serão discutidos de forma mais profunda nos dias seguintes).
E sem esse controle do que o estudante faz no exterior, de forma "online", e quais matérias ele está de fato matriculado, os objetivos do programa ficam basicamente comprometidos. "Se perguntarem hoje para nós quantos alunos se afastaram, a gente não sabe dizer ao certo. É preciso sair ´catando´ caso a caso. Os sistemas do CNPq e da Capes não nos fornecem informações em tempo real. Nós não sabemos que cursos os alunos estão fazendo neste momento, nem temos informações precisas e atualizadas sobre quando ele viajou e quando ele voltou", afirma Josilan Barbosa, da coordenação do CsF da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Modelo de métricas padronizado
"É preciso criar um modelo de acompanhamento nacional da mobilidade dos alunos. A universidade precisa saber o que ele está fazendo no exterior. Se ele for solto, sem esse planejamento prévio por parte da coordenação do curso no Brasil, ele pode perder tempo no processo de aproveitamento dos estudos", afirma o pró-reitor de graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC) Custódio Almeida.
Mesmo elogiando o programa, Almeida alerta que o "principal" ajuste a ser feito no CsF tem a ver, exatamente, com a criação de uma metodologia de acompanhamento das atividades do estudante no exterior. "Hoje, não existe um modelo nacional. Algumas instituições fazem um controle por conta própria, outras não", fala.
Outro defensor da criação de indicadores mais eficientes é o professor Marcelo Knobel, ex-pró-reitor de graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é categórico ao afirmar que é preciso desenhar métricas precisas para avaliar os impactos e os resultados do programa. E a partir daí fazer os ajustes necessários.
"É possível criar mecanismos para isso. Verificar qual foi o desempenho do aluno em relação a um grupo é uma possibilidade. A sociedade também exige que a Capes e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; as duas agências federais responsáveis pela coordenação do programa] utilizem os dados e as informações dos estudantes que eles já têm e, a partir disso, criem uma metodolodia de controle da efetividade da ação. O problema é que o objetivo do programa como um todo não está muito claro", fala Knobel.
O pesquisador da Unicamp se refere aos questionários e à documentação de prestação de contas e da realização das atividados no exterior que os estudantes devem enviar às agências federais ao fim do intercâmbio que geralmente dura um ano. O problema é que, mesmo enviando tais documentos, os alunos não recebem retorno das agências, segundo estudantes consultados pela reportagem.
"Eu gosto do programa, mas é preciso fazer certas críticas construtivas. Preenchi os documentos, mas foi basicamente isso. Não recebi retorno, nem feedback sobre a avaliação da experiência no exterior pelo CNPq. Além disso, também tive problemas de comunicação com o órgão", fala o pernambucano Victor Lira, de 22 anos, aluno de Medicina. Ele foi estudar no Canadá por um ano, de setembro de 2012 a setembro de 2013.
Lira se refere à dificuldade que teve em entrar em contato com o CNPq para tirar dúvidas sobre atividades acadêmicas e outras questões burocráticas. E o estudante não está só.
"A maioria dos bolsistas reclama muito da dificuldade de falar com os técnicos responsáveis pela bolsa quando encontram algum problema. A impressão é que, uma vez lá, você está por sua conta. Se houver qualquer tipo de problema ou erro por parte do CNPq e Capes, é melhor não precisar contar com a ajuda do governo", explica Igor Patrick Silva, de 21 anos, estudante da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Atraso no pagamento de bolsas de auxílio financeiro foi outro problema identificado, de forma mais intensa, nos primeiros anos do programa.
Igor é um dos administradores da página no Facebook Ciência com Fronteiras, que desde novembro de 2012 reúne críticas de mais de 9 mil universitários ao programa. O estudante mantém contato com cerca de 300 bolsistas do CsF, especialmente pelas redes sociais.
Eles querem se dedicar à Ciência?
Marcus Smolka é professor do Departamento de Biologia Molecular e Genética da Universidade de Cornell, uma das melhores dos Estados Unidos. Há cerca de dois anos, foi convidado pela instituição a receber um grupo de 50 brasileiros que iria fazer graduação-sanduíche ali.
Smolka ficou animado, imaginou que poderia incluí-los em pesquisas do seu laboratório. Mas nada disso aconteceu. "É frustrante. Tentei encontrá-los, mandei e-mail, mas nunca recebi qualquer retorno. Fui tentar entender o motivo e vi que eles estavam só cursando disciplinas. A prioridade era ir para a aula."
A realidade observada por Smolka em Cornell se repete em parte das universidades estrangeiras que recebem estudantes de graduação do Brasil. Diante disso, surge a questão: esses alunos poderão contribuir para a internacionalização da ciência e da tecnologia do Brasil, como prevê o programa que tem um orçamento de mais de R$ 3 bilhões?
MENEGHINI: no contexto do desenvolvimento da ciência, a ida de alunos de graduação ao exterior não vai fazer qualquer diferença
O professor aposentado da USP e diretor científico do programa SciELO de revistas científicas brasileiras, Rogerio Meneghini, é enfático em sua resposta. "Não. No contexto do desenvolvimento da ciência, a ida desses estudantes de graduação ao exterior não vai fazer qualquer diferença".
Meneghini acredita que a experiência internacional pode significar uma vivência pessoal importante e ajudar no amadurecimento de um tanto de habilidades e perspectivas de futuro, mas nada disso, reitera, tem relação com a ciência propriamente dita. "A experiência é válida, mas a qual custo? É vultoso demais para o Estado bancar uma experiência de intercâmbio. Esse tipo de viagem teria de ser coberta pela própria família."
O cientista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Stevens Rehen, conta que recentemente perguntou a uma graduanda recém-chegada do programa qual teria sido a experiência mais importante de sua estadia no exterior. "A resposta que ela me deu foi que a melhor coisa era que o trem parava em frente ao instituto. Ela ficou esse tempo todo e só descobriu essa questão da infraestrutura”, diz.
Para Rehen, se o objetivo do programa Ciência sem Fronteiras é internacionalizar a produção brasileira, é preciso partir do pressuposto de que internacionalizar é internalizar. "Talvez, o melhor fosse trazer gente para cá. O impacto seria muito maior. Do jeito que está, pode ser legal, mas não vai mudar a ciência brasileira."
O pesquisador acredita que, se mapeadas as escolhas futuras desse contingente de alunos de graduação-sanduíche, o porcentual que se dedicará à pesquisa será de 1% a 2%, exatamente o mesmo índice dos universitários que fazem o curso todo em terras tupiniquins.
Segundo o iG Educação apurou, o programa pensa em abrir oportunidades de bolsas para alunos estrangeiros. Hoje, já existe uma modalidade dentro do CsF que permite a vinda de professores visitantes de outros países ao Brasil. A adesão, no entanto, não é alta.
Defensores, mas com ressalvas!
As fragilidades de gestão do programa, contudo, não são capazes de tirar o mérito da iniciativa, é o que afirmam outros especialistas consultados pela reportagem. "A iniciativa foi boa. É um esforço do Brasil para colocar o estudante em contato com o mundo. O problema é que foi precipitado, em grande escala e acabou indo muita gente sem preparo", pondera o ex-embaixador Rubens Barbosa, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). "É preciso aperfeiçoar. Do jeito que está, se gasta muito dinheiro e o resultado fica muito longe do ideal", diz Barbosa.
Para o especialista em educação Claudio de Moura Castro, ex-diretor da Capes, os problemas de gestão do Ciência sem Fronteiras são frutos do ineditismo e do "ganho de escala" da iniciativa.
"É um processo de aprendizagem. Quando você manda tantos alunos para o exterior ao mesmo tempo, fica praticamente impossível avaliar aluno por aluno. O que o MEC está fazendo é uma subversão, no bom sentido. Com os dados que temos hoje, é impossível afirmar que o governo está errando demais ou de menos", fala Castro.
O vice-presidente da região Sul da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Francisco Salzano, tem posição semelhante. "É difícil ter uma avaliação precisa e imaginar que tudo dê certo. No entanto, isso não significa que ela [a avaliação] não deve ser feita de forma cuidadosa. E a partir disso, deve-se então redirecionar ações para verificar os pontos no programa que precisam ser aprimorados", fala Salzano, que também é geneticista na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Iniciação científica
O membro da ABC também acredita que o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) - voltado à introdução do universitário brasileiro à pesquisa - possa servir de referência para a criação de indicadores de monitoramento das atividades do bolsista do Ciência sem Fronteiras. Pelo Pibic, o aluno é monitorado mais de perto pelo professor orientador e é obrigado a fornecer relatórios constantes ao docente, à universidade de origem e aos órgãos de fomento, com risco de perder a bolsa caso não cumpra com todas essas obrigações.
Em seguida, o estudante deve apresentar, ao menos, um artigo parcial e um final demonstrando apropriação e a sistematização dos conhecimentos adquiridos. Nesse último, o aluno precisa apresentar os resultados do estudo diante de uma banca de professores. Terminado o ciclo de estudos, é comum que o estudante tenha o resumo de suas atividades publicado em periódicos abertos à consulta pública, permitindo assim o acesso de outros estudantes que têm interesse na área de estudo ao material produzido pelo jovem pesquisador.
Atualmente, mesmo os alunos que têm experiência com pesquisadores no exterior e participam de atividades em laboratórios, quando retornam ao Brasil eles, geralmente, não são absorvidos pelos grupos de pesquisas de suas instituições de origem. Ou pela inexistência ou por falta de articulação prévia com os pesquisadores locais.
Posição do governo
A reportagem consultou os dois ministérios responsáveis pelo programa: o MEC e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), além das agências coordenadoras: a Capes e o CNPq. Foram solicitadas ainda, entrevistas diretas com os respectivos ministros e os referidos presidentes das agências. Não houve retorno por parte do MCTI. Os demais órgãos explicaram que caberia ao MEC a centralização do posicionamento do Governo Federal.
De forma geral, a pasta informou que o CsF é, "inegavelmente, uma política governamental de sucesso, que vem sendo destacada por diversos países".
Sobre a inexistência de indicadores de qualidade para controlar a efetividade da iniciativa, o MEC fala que "estudos que tratam da análise de impacto do programa, com seus respectivos indicadores, estão sendo realizados por especialistas e seus resultados serão divulgados assim que as análises forem concluídas".
À respeito do número limitado de funcionários da Capes estar impactando a qualidade de atendimento aos bolsistas, o ministério discorda. "Foram realizadas melhorias nos sistemas e fluxos de trabalho para atender a todos os candidatos, bolsistas e egressos".
Sobre o acompanhamento do aluno, o MEC fala que o controle "é feito desde a sua candidatura, permanência no exterior e retorno ao Brasil. Durante a permanência no exterior, os bolsistas são acompanhados pelas instituições estrangeiras e pelos parceiros internacionais responsáveis por sua alocação. O programa também controla as atividades realizadas pelo bolsista por meio de relatórios submetidos às agências de fomento. Além disso, quando o candidato se torna bolsista, ele recebe um login e uma senha para o acesso aos sistemas da Capes que permite o contato direto com o técnico responsável pelo acompanhamento da bolsa de estudos".
Questionado sobre o que o Governo Federal vem fazendo para melhorar a gestão do programa e sanar as falhas, a pasta informou que "a Capes implantou novos processos, métodos e sistemas de gestão e controle para acompanhamento dos bolsistas que estão no exterior e daqueles que já retornaram ao país".
Por fim, o MEC ainda informa que, "dado o sucesso do programa e a enorme demanda", a meta de enviar 101 mil bolsistas até 2015 deve ser cumprida até o final de 2014. Do total de bolsas oferecidas pelo Ciência sem Fronteiras, 75 mil serão financiadas com verbas do Governo Federal e 26 mil bolsas serão concedidas com recursos da iniciativa privada.
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