FOTO: Gluca, a cabrita clonada. Crédito: Jarbas Oliveira/Estadão
Texto de Herton Escobar / O Estado de S. Paulo
Animal, o primeiro do tipo na América Latina, é
geneticamente modificado para produzir no leite uma proteína humana,
usada no tratamento da doença de Gaucher
Nasceu há pouco mais de duas semanas, em Fortaleza (CE), a primeira
cabra clonada e transgênica do Brasil — e da América Latina. Chamada
pelos cientistas de Gluca, ela possui uma modificação genética em seu
DNA que deverá fazer com que ela produza no seu leite uma proteína
humana chamada glucocerebrosidase, usada no tratamento da doença de
Gaucher.
Trata-se de uma doença genética relativamente rara, porém
extremamente custosa para o sistema público de saúde. Segundo
informações levantadas pelos pesquisadores, o Ministério da Saúde gasta
entre R$ 180 milhões e R$ 250 milhões por ano com a importação de
medicamentos para o tratamento de pouco mais de 600 pacientes com
Gaucher no Brasil.
As drogas importadas são baseadas em proteínas produzidas in vitro,
cultivadas em células transgênicas de hamster ou de cenoura, por
empresas nos Estados Unidos e em Israel. A proposta da pesquisa
brasileira seria produzir a glucocerebrosidase no País, no leite de
cabras transgênicas, a custos muito inferiores ao da produção em
culturas celulares.
“Alimentar cabras é bem mais barato do que alimentar células; e o
processo final de purificação da proteína é basicamente o mesmo”, diz a
pesquisadora Luciana Bertolini, da Universidade de Fortaleza (Unifor),
que é uma das coordenadoras do projeto.
A cabritinha Gluca nasceu no dia 27 de março e não apresenta, por
enquanto, nenhum problema de saúde. “Ela já nasceu berrando, superativa,
sem qualquer complicação”, empolga-se a Luciana, que é bióloga
molecular e trabalha no projeto com o marido Marcelo, que é veterinário.
Dentro de quatro meses, os cientistas poderão iniciar a indução
hormonal de lactação e confirmar a presença da proteína humana no leite
do animal. “Precisamos saber quanto da proteína está sendo expressa e
testar sua atividade biológica”, explica Luciana.
Que a cabrita é transgênica, pelo menos, não há dúvida. Essa é grande
vantagem de se usar a clonagem, versus fertilização in vitro: a certeza
de que todos os embriões transferidos para as fêmeas gestantes são
transgênicos. Isso porque a modificação genética já vem “embutida” e
confirmada na célula que é usada para fazer a clonagem; enquanto que na
fertilização in vitro é preciso injetar o gene nos embriões e
transferi-los para o útero das cabras sem saber se o gene se inseriu com
sucesso no DNA das células embrionárias (técnica conhecida como
microinjeção, que já foi usada para produzir outras cabras transgênicas
no Brasil nos últimos anos).
“Com a microinjeção, às vezes nascem 15 a 20 animais para você
conseguir 1 transgênico. Na clonagem, qualquer um que nascer você já tem
certeza que é transgênico”, explica Luciana. “Assim você evita muitas
gestações desnecessárias.”
Contabilidade. Gluca é o único clone nascido até
agora de um grande esforço de reprodução, que envolveu a transferência
de mais de 500 embriões clonados para 45 cabras receptoras, resultando
em 8 gestações (ou prenhezes). Ela tinha uma “irmã” de útero na mesma
gestação, que morreu logo após o parto, vítima de anomalias congênitas
que são comuns aos clones de mamíferos, como tamanho exagerado, órgãos
aumentados e malformações cardíacas. Apenas uma das oito prenhezes ainda
está em andamento.
O gene inserido no DNA dos animais é uma cópia do gene humano que
comanda a síntese da glucocerebrosidase, acoplado a uma outra sequência
genética (chamada de promotor) que faz com que o gene, apesar de estar
presente em todas as células da cabra, seja ativado apenas nas células
das glândulas mamárias – fazendo com que a proteína seja produzida
apenas no leite e não no sangue, por exemplo.
A construção do gene e do promotor foi realizada pela empresa Quatro G Pesquisa e Desenvolvimento,
instalada no parque tecnológico (Tecnopuc) da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que também será responsável
posteriormente por purificar a proteína do leite.
Se tudo der certo e o leite de Gluca for rico em glucocerebrosidase
(há a possibilidade de o gene ter se inserido corretamente no genoma,
mas a produção da proteína ser baixa), os cientistas poderão usar suas
células para fazer novos clones, geneticamente idênticos a ela, e assim
começar a formar um rebanho para produção da proteína em larga escala,
para uso terapêutico.
“Estamos dando o primeiro passo na direção de uma futura terapia de
reposição enzimática para Gaucher”, diz a diretora de desenvolvimento da
Quatro G e co-coordenadora do projeto, Jocelei Chies. “O Brasil não tem
nenhuma proteína recombinante (produzida por meio de transgenia) para uso humano que seja feita aqui.”
Nos EUA, uma droga chamada ATryn (antitrombina humana) já é produzida exatamente dessa forma, no leite de cabras transgênicas.
Mutação. A glucocerebrosidase é uma enzima que atua no metabolismo de lipídeos (gorduras). Portadores da doença de Gaucher
possuem mutações que interferem na síntese dessa enzima, resultando num
acúmulo de gordura dentro das células, que pode causar uma série de
problemas, principalmente no fígado e no baço. O tratamento, portanto,
consiste em repor essa enzima no organismo por meio da administração
intravenosa de glucocerebrosidase ou outra proteína com função parecida.
Os dois medicamentos disponíveis no mercado internacional são produzidos pela Genzyme, nos EUA (utilizando células transgênicas de hamster), e pela Protalix Biotherapeutics
, em Israel (utilizando células transgênicas de cenoura). Em junho de
2013, a Protalix assinou um acordo com o governo brasileiro para
transferir sua tecnologia de produção para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
num prazo de sete anos – durante os quais o Ministério da Saúde, em
contrapartida, deverá comprar, no mínimo, US$ 280 milhões do medicamento
da empresa, até que ela possa ser produzida no País.
A fábrica nacional da droga, ironicamente, deverá ser construída
justamente na região metropolitana de Fortaleza, próximo da unidade da
Unifor onde ficam as cabras transgênicas do projeto.
Luciana ressalta que a proteína da Protalix, chamada taliglucerase
alfa (nome comercial Uplyso), só pode ser usada para um dos três tipos
de Gaucher, além de outras restrições, pelo fato de ser produzida em
células vegetais. Já a glucocerebrosidase produzida no leite de cabras
transgênicas seria essencialmente idêntica à humana e aplicável a todos
os tipos da doença.
A pesquisadora destaca ainda que o objetivo não é apenas produzir uma
cabra transgênica, publicar um trabalho científico e parar por aí.
“Queremos gerar um produto que seja eficiente e acessível àqueles que
precisam dele; esse é o nosso sonho”, diz. O projeto vem sendo
desenvolvido há três anos e foi financiado principalmente pela Finep (R$ 2,5 milhões), com apoio também da Fundação Edson Queiroz, Unifor e Agropecuária Esperança.
Foto:
Luciana Bertolini com o marido, Marcelo (com Gluca no colo), e alunos
da Unifor que participam do projeto (com a cabra adulta da qual Gluca
foi clonada). Crédito: Jarbas Oliveira/Estadão
O mesmo grupo da Unifor tem um projeto semelhante para produzir
cabras transgênicas com os genes de lisozima e da lactoferrina, duas
proteínas importantes para o combate à diarreia infantil no semiárido
nordestino. A cabrita transgênica (mas não clonada) Lisa, nascida no ano
passado, deu à luz uma cabritinha no fim de março, e suas células já
estão sendo usadas para produzir embriões clonados com os genes das duas
proteínas embutidos.