Invadi Reitoria quatros vezes na USP.
Invadi espaço do Crusp ocupado pela área administrativa da universidade.
Fiz miguelito — quem era ou é do ramo sabe do que se trata.
Apanhei.
Quase me lasquei bonito aos 16 anos.
Mas nunca
fiz o que vocês verão abaixo. Nunca! Esses brucutus que se querem
libertários não sabem o preço da liberdade. Não sabem o que é se
arriscar por ela. Não estão preparados para a divergência.
O busílis é o seguinte.
O
professor de direito administrativo Eduardo Lobo Botelho Gualazzi,
professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP, dava
nesta segunda, dia 31 de março, uma aula em que criticava os regimes
socialistas. Antes disso, consta, teria tornado público um texto em que
defende o regime militar instaurado em 1964 no país.
Não
conheço o texto, mas é muito provável que eu não concorde com Gualazzi
hoje e é certo que não teria concordado com ele aos 18 anos. Agora, como
antes, entendo que a palavra é a melhor expressão da divergência e que o
tema poderia ter sido objeto de debate dentro da sala da aula.
Mas não!
Esse grupo — não sei se com o apoio do Centro Acadêmico 11 de Agosto —
resolveu simular cenas de tortura na porta da sala de aula e, em
seguida, a invadiu. Convoquei muita greve na USP, deixo claro. Batia à
porta. Pedia licença ao “mestre” — a orientação era para que chamássemos
o professor de mestre — para falar. Se ele permitisse, muito bem,
dávamos o recado; se não, então agradecíamos, pedíamos desculpa pela
interrupção e saíamos. Não procedíamos daquele modo porque o país era
uma ditadura e estávamos ainda a nove anos das eleições diretas.
Procedíamos daquele modo porque entendíamos que certas conquistas da
civilização deveriam permanecer fosse qual fosse o regime. Bem, vejam o
vídeo com o barbárie. Volto em seguida.
Retomo
Um leitor manda-me seguinte trecho, atribuído a um dos invasores, que estaria no primeiro ano: “Esse
professor distribuiu antes da aula um texto para alunos explicando por
que ele defendia a ‘revolução’ de 1964 e como isso foi bom para o
Brasil. Então nos reunimos para fazer um escracho contra ele. Antes de
entrar, fizemos um pequeno teatro de uma cena de tortura e entramos
dentro da sala. O professor foi muito agressivo, empurrou alunos. Ele
perdeu as estribeiras, quis expulsar os estudantes de dentro da sala,
mas começamos a batucar e ele saiu muito nervoso”.
O que foi
que esse rapaz aprendeu sobre civilidade, contraditório, divergência?
Santo Deus! Trata-se, nada menos, de uma faculdade de direito, onde se
aprende, é lição básica, que um dos pressupostos de um regime de
liberdades públicas e individuais é que todos têm o direito a um
advogado — se a pessoa não puder arcar com um, às suas expensas, o
Estado se encarregará de fazê-lo. Um defensor público, diga-se, cuidou
do caso até de um dos réus do mensalão — aliás, foi o mais bem-sucedido
na Corte.
Reitero:
não se trata de concordar ou não com a tese de Gualazzi. Por razões
teóricas, histórias e até sentimentais, é possível que eu discorde
profundamente dele, mas estou certo de que não é assim que se fazem as
coisas.
Cabe a
pergunta óbvia: esse grupo se tornou agora o Comitê de Censura da São
Francisco? É ele que vai definir o limite do que pode e do que não pode
ser dito em sala de aula? Esses ignorantes truculentos conseguirão,
finalmente, realizar o que nem o golpe militar conseguiu: eliminar,
também no conteúdo, a chamada liberdade de cátedra?
É claro
que essa gente, vê-se pela idade dos que tiram o capuz, não participou
da luta pela redemocratização do país; é claro que essa gente só age de
modo tão covarde porque sabe que não haverá consequências; é claro que
essa gente só é tão bruta porque sabe que lhes vão conceder a licença
para ser truculenta, embora ela própria não conceda a quem considera
adversário nem mesmo o direito de falar. É claro que essa gente só age
desse modo porque tem claro que o máximo risco que corre é o de humilhar
os outros.
“Ah,
Reinaldo, o ancião de 52 anos, quer ensinar a meninada a fazer a
militância!” Eu não quero ensinar nada. Segundo o meu entendimento de
democracia, também os idiotas e os ignorantes têm direito a voz e voto.
Mas civilidade e senso de limites independem, em larga medida, do que se
pensa. E só passa a ser função do que se pensa quando o que se tem em
mente é um regime totalitário. Faço uma pergunta que o agora
neoesquerdista Caetano Veloso fez àqueles que o impediram de cantar a
música “É proibido proibir” num festival em 1968: essa gente é diferente
dos fascistas que invadiram, naquele ano, o teatro e espancaram os
atores da peça Roda Viva? Também esses “jovens” muito velhos estão
matando agora o velhote inimigo que morreu anteontem.
Vejam lá o
que diz o rapaz. O futuro advogado não acredita no valor da palavra e
do debate. Ele aposta é no escracho. Acha que, se os “inimigos”
estiverem sendo humilhados, na força bruta, silenciados, então é sinal
de que a luta avança. Ninguém contou a esse cara que, se e quando a sua
ideia triunfar, com todos inimigos eliminados, então os vitoriosos
começarão a fazer a caçada e a “cassada” entre si — porque esse é o
destino fatal de todas as revoluções que impõem a sua verdade
silenciando as demais: do Terror Francês à Coreia do Norte é assim.
A crise é mais geral
A crise do pensamento é
mais geral. Eu vivi, infelizmente, a crise do pensamento marxista no
Brasil, nos anos 80, para a qual o petismo concorreu de maneira
importante — e mais ainda os grupelhos que estavam incrustados na
legenda e acabaram, depois, ganhando vida própria.
Enquanto o
marxismo foi, no Brasil, um domínio do “Partidão”, do antigo PCB,
conservava-se certa noção de história — ainda que eu, trotskista estão,
achasse a turma equivocada. Mas também nós éramos viciados na literatura
específica; havia um amor genuíno pela teoria, por mais equivocada que
ela me pareça hoje, 34 anos depois.
O gosto
pela formação foi substituído pelo voluntarismo. Eu conheço a cara de
paisagem de muitos “esquerdistas” da academia quando se cita um texto de
referência daquela que deveria ser a especialidade deles. Não se lê
mais nada, não se estuda mais nada, não se pesquisa mais nada. Em vez
disso, rosna-se e pragueja-se em nome da “justiça”.
Uma
barbaridade como essa deveria mobilizar os professores, o Conselho
Universitário, a direção da universidade, Centro Acadêmico — que,
consta, e temo que seja verdade, apoiou esse ato de violência.
Sinto-me
envergonhado, a tal vergonha alheia, ao assistir a esse vídeo. Fico um
tanto constrangido até de escrever a respeito. Qual é o grau de
tolerância dessa turma para as ideias das quais discorda?
Como lembrei certa feita, “Liberdade é, apenas e exclusivamente, a liberdade dos que pensam de modo diferente.” E emendei então:
“A frase já foi um clichê
na boca de esquerdistas que se opunham ou à ditadura ou a supostos
consensos que, na democracia, não eram do seu agrado. Poderia ter sido
dita pela liberal-libertária Ayn Rand, mas a autora é a comunista Rosa
Luxemburgo. Confrontava Lênin, que mandou às favas a Assembleia
Constituinte. No seu equívoco, Rosa tinha a honestidade dos ingênuos,
mas revoluções são conduzidas pelo cálculo dos cínicos. A liberdade
perdeu. A múmia de Lênin fede. Seu cadáver ainda procria.”
Mas sabem
como é… Aquele rapaz deve pensar assim: “Eu acho esse professor
fascista. Para provar que eu não sou, então invado a aula dele e o
proíbo de falar”. E ele não vê nada de errado em seu raciocínio. Ele se
considera um humanista.
Se há
professores felizes com o que viram — e certamente há —, uma advertência
óbvia e lógica: vocês entraram na fila do escracho; ainda chegará a vez
de vocês. E pode ser que não haja ninguém mais para reclamar, para
lembrar o pastor Niemöller.