Qual é a motivação do governo de Dilma Rousseff para rebaixar-se à condição de eco dos sucessores de Hugo Chávez?
Demétrio Magnoli
Quem escreveu aquele comunicado vergonhoso? “Os Estados Partes do
Mercosul (...) rechaçam as ações criminosas dos grupos violentos que
querem disseminar a intolerância e o ódio na República Bolivariana da
Venezuela”, “expressam sua mais firme rejeição às ameaças de ruptura da
ordem democrática” e “confiam plenamente que o governo venezuelano não
descansará no esforço para manter a paz e as plenas garantias de todos
os cidadãos”. Essas linhas são uma cópia quase literal das declarações
do governo da Venezuela. O Brasil só assinou embaixo, produzindo uma das
páginas mais sombrias da história de nossa política externa. Qual é a
motivação do governo de Dilma Rousseff para rebaixar-se à condição de
eco dos sucessores de Hugo Chávez?
Nos tempos de Lula, tínhamos
uma política externa com inflacionadas pretensões, guiada pela meta de
obter um lugar no Conselho de Segurança da ONU. Falava-se na construção
de uma ordem global multipolar, na ruptura da “hegemonia americana” e na
reorganização Sul-Sul do comércio mundial. O chanceler Celso Amorim
proclamou uma “aliança estratégica” Brasil-China. Uma vertente
ultranacionalista personificada por Samuel Pinheiro Guimarães flertou
com a ideia de edificação de um arsenal nuclear brasileiro. No auge do
desvario, oferecemos uma cobertura à aventura nuclear iraniana. Hoje,
nada restou daquela espuma: tornamo-nos, apenas, um aparelho de
repetição das frases e dos gestos de Nicolás Maduro.
A política
externa lulista era um castelo de areia inspirado por reminiscências do
terceiro-mundismo e uma renitente nostalgia do projeto de
Brasil-Potência delineado na ditadura militar. O castelo desabou sob o
impacto de fracassos em série e do notório desinteresse de Dilma por
qualquer coisa que aconteça fora das fronteiras nacionais. Sobrou um
caroço duro de compromissos políticos e ideológicos: hoje, o Brasil
define seu lugar no sistema internacional em função do imperativo da
proteção dos interesses do regime castrista. Eis a chave para decifrar o
comunicado do Mercosul.
O destino da “revolução bolivariana”
nunca tocou nos feixes nervosos do lulopetismo. Lula assistiu,
contrariado, à ascensão de Chávez como liderança concorrente na América
Latina e tentou guardar distância dos rompantes antiamericanos do
caudilho de Caracas. Mas a Venezuela chavista firmou uma estreita
aliança com Havana e o petróleo subsidiado da PDVSA converteu-se na
linha vital para a sobrevivência do Estado castrista. É por esse motivo
que o Brasil firmou um comunicado no qual a oposição venezuelana aparece
sob o rótulo de “grupos criminosos” engajados em promover um golpe de
Estado.
Bem antes da segunda candidatura presidencial de Lula, em
1994, um editorial da revista teórica do PT qualificou a Cuba de Fidel
Castro como uma ditadura indefensável. Nos anos seguintes, enquanto José
Dirceu reinventava o PT como uma azeitada máquina política, Lula fazia
uma opção preferencial pela ditadura cubana, rejeitando a oferta de
acomodar seu partido no ônibus da social-democracia europeia.
Aquelas
escolhas marcam a ferro a política externa do lulopetismo. Tilden
Santiago, um embaixador brasileiro em Havana, elogiou os fuzilamentos
políticos promovidos pelo castrismo em 2003. No Ministério da Justiça,
em 2007, Tarso Genro deu a ordem imoral de deportação dos boxeadores
cubanos. Três anos depois, Lula identificou os presos políticos cubanos
como criminosos comuns. É nessa trajetória que se inscreve o comunicado
do Mercosul.
A Venezuela ainda não é uma ditadura, pois conserva a
liberdade partidária e um sistema de sucessão baseado em eleições
gerais. Contudo, já não é mais uma democracia, pois eliminou-se a
independência do Judiciário, restringiu-se a liberdade de imprensa e as
Forças Armadas foram submetidas ao catecismo chavista. À beira do
colapso econômico, o regime enfrenta uma onda de insatisfação que se
espraia da classe média para os pobres. Confrontados com manifestações
de protesto, os sucessores de Chávez recorrem a intimidações, prendem
sem acusações críveis um líder opositor e soltam a rédea dos
“coletivos”, que operam como grupos paramilitares de choque.
O uso
da força contra manifestações pacíficas foi respaldada pelo Mercosul,
mas crismada como “inaceitável” até mesmo por José Vielma Mora,
governador chavista do estado de Tachira, que pediu a libertação de
“todos os aprisionados por razões políticas”. Até quando Dilma Rousseff
emprestará o nome do Brasil à repressão “bolivariana”?
Cuba é o
nome da armadilha. De um lado, sem a vasta transferência de recursos
proporcionada pela Venezuela, o poder castrista enfrentaria o espectro
do colapso. De outro, o governo brasileiro não dispõe das condições
políticas necessárias para assumir o lugar da Venezuela. O Brasil já
financia o regime dos Castro por meio de obscuros empréstimos do BNDES e
das remessas de divisas associadas ao programa Mais Médicos.
Entretanto, mesmo diante de uma oposição prostrada, o lulopetismo não
tem como vender à nação a ideia de converter o Brasil no Tesouro de
Cuba. Como produto do impasse, nossa política externa foi capturada pela
crise da “revolução bolivariana”.
“A Venezuela não é a Ucrânia”,
disse a primeira-dama Cilia Flores, desvelando mais um temor que uma
certeza. A profundidade da crise não escapou à percepção de Heinz
Dieterich, o sociólogo que cunhou a expressão “socialismo do século 21” e
serviu durante anos como conselheiro ideológico de Chávez. Dieterich
conclamou “uma facção” do chavismo a articular “uma aposta democrática
de salvação nacional” que se coagularia num governo de coalizão com os
oposicionistas moderados reunidos em torno de Henrique Capriles.
Qualquer saída política pacífica exigirá um esforço de mediação
internacional. O Brasil só poderá ajudar se o governo conseguir separar o
interesse nacional dos interesses da ditadura castrista.