A profusão de periódicos que publicam qualquer estudo, por menos rigoroso que ele seja, bastando apenas que o autor pague por isso, é uma praga a que o Brasil vem aderindo com preocupante entusiasmo — mesmo aquelas instituições que deveriam zelar pela excelência da pesquisa no país
Um espectro assombra a comunidade científica internacional: o dos periódicos sem credibilidade. Não é difícil entender o porquê. Alguns dos avanços mais extraordinários da ciência vieram a público pela primeira vez sob a forma de artigos editados em veículos de peso. Neles prevalece aquilo que está no coração da própria metodologia científica, a peer review, ou seja, a revisão pelos pares. Esse processo visa a replicar os resultados de um estudo, a fim de comprová-lo, sem a presença de seu autor ou autores. Não há outra maneira de fazer a ciência merecer esse nome — e andar para a frente. Dois exemplos bastam para dar a dimensão exata da importância dos autênticos periódicos científicos: a teoria da relatividade, do alemão Albert Einstein, teve seu registro de nascimento documentado numa série de quatro ensaios veiculados entre março e setembro de 1905 nos Annalen der Physik, um dos mais antigos mensários do gênero, fundado em 1790, em Berlim; já a estrutura do DNA, desvendada pelo britânico Francis Crick e pelo americano James Watson, foi apresentada ao mundo num breve texto assinado por eles na edição de 25 de abril de 1953 da Nature, prestigiosa revista inglesa cujo número de estreia circulou em novembro de 1869. Além de colocarem as novas pesquisas — e seus autores, claro — no centro das atenções, as publicações que primam pelo rigor científico impulsionam os estudos nas áreas envolvidas, fazendo girar, assim, a roda do conhecimento.
Um fenômeno recente, no entanto, está pondo em risco esse círculo virtuoso: a proliferação de editoras que mantêm periódicos cujo único obstáculo para a veiculação de artigos pseudoacadêmicos é o pagamento de uma taxa de publicação, que varia muito, mas costuma começar na casa dos 600 dólares. Pouco importa se os textos se baseiam em má ou nenhuma pesquisa; se são originais ou plagiários; se obedecem a mínimos critérios de metodologia e seriedade. Como a produção ensaística é um valioso critério para ascensão profissional no universo acadêmico, e tendo em vista que a publicação de artigos em veículos de credibilidade costuma seguir um implacável e lento processo de seleção, um número cada vez mais expressivo de cientistas tem recorrido ao expediente de pagar para ter, rapidamente, seus textos editados. Se para os pseudocientistas o volume de artigos publicados pode permitir galgar importantes degraus de prestígio intelectual — inflando também a vaidade pessoal —, para os proprietários dos periódicos científicos de segunda linha, como em qualquer negócio, o aumento de clientes costuma significar um faturamento maior.
Não era esse, é verdade, o objetivo inicial das publicações do chamado modelo open access, surgidas na Europa e nos Estados Unidos na década de 90. A ideia era ampliar a difusão do conhecimento e oferecer mais oportunidades aos intelectuais de países em desenvolvimento. Não demorou, porém, para que o escopo ganhasse outros contornos. Abrindo mão do rigor — a americana Science (1880), para se ter uma ideia, publica apenas 7% dos artigos que recebe — e reduzindo ao mínimo o tempo para a veiculação dos textos, os novos periódicos viraram um atalho para os maus cientistas e uma boa fonte de renda para quem se dispôs a, digamos assim, empreender nesse novo ramo. As revistas e jornais científicos tradicionais não cobram especificamente pela edição de artigos, embora, muitas vezes, exijam que os textos venham acompanhados de gráficos e fotos, o que incorre em custos, e, após a divulgação, cobram de todos aqueles que quiserem visualizar o paper — em média, 32 dólares. De qualquer modo, não parecem exigências descabidas.
Nem todo veículo open access, ressalte-se, tem como principal característica o desleixo científico; entretanto, todo meio científico desleixado é open access. O Brasil aderiu a esse modelo com preocupante entusiasmo. Já são mais de 1 000 publicações no gênero, o que põe o país atrás apenas dos EUA (onde elas passam de 1 200). Ao mesmo tempo, um rápido levantamento on-line permite constatar que é grande o número de pesquisadores brasileiros que recorrem a periódicos questionáveis, daqui ou do exterior, para divulgar seus trabalhos. Impressiona ainda mais o fato de muitos desses veículos serem bem avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento à pesquisa ligada ao Ministério da Educação. Sob sua batuta está o Qualis, um sistema de avaliação da qualidade dos periódicos científicos, que atribui a eles conceitos A, B e C, decrescentes, segundo determinados parâmetros. Tais notas são consideradas por universidades e instituições na hora de conceder financiamentos ou mesmo promoções aos pesquisadores que frequentam as páginas daqueles veículos. Se as publicações que desprezam o apuro científico forem bem avaliadas pela Capes — e isso ocorre, como se verá adiante —, é evidente que decorrerá disso uma grave distorção.Haverá pesquisadores beneficiados a partir de falsos méritos. E isso, muitas vezes, com recursos públicos. Agora, o pior: é possível detectar entre os clientes dos meios sem credibilidade professores que fazem parte da Capes, ou seja, exatamente aqueles que deveriam zelar pela excelência da produção acadêmica do país.
Se fossem quadros de baixo escalão, já seria péssimo. Contudo, o próprio presidente da instituição, o biomédico Jorge Almeida Guimarães, aceitou se valer de um veículo de credibilidade duvidosa para publicar o trecho de um livro do qual é coautor. Mediante pagamento de 670 euros (cerca de 2 100 reais), a editora croata InTech Open disponibilizou na internet o capítulo “Lesão renal aguda induzida por cobras e artrópodes venenosos”, escrito por Guimarães e dois pesquisadores das universidades federais de Minas e do Rio Grande do Sul. No texto, eles afirmam que picadas de cobras e de artrópodes venenosos são importantes problemas de saúde pública negligenciados pelas autoridades brasileiras e estrangeiras. A InTech, que já mudou de nome pelo menos quatro vezes desde que foi fundada, em 2004, está na lista negra de periódicos científicos elaborada por Jeffrey Beall, bibliotecário da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, uma referência no assunto. A exemplo do índex preparado por Lars Bjørnshauge, ex-diretor das bibliotecas da Universidade de Lund, na Suécia, a relação montada por Beall é consultada periodicamente por instituições e pesquisadores do exterior na hora de fazerem suas avaliações. Procurada por VEJA, a assessoria de imprensa da Capes respondeu que Guimarães não tinha disponibilidade de agenda para tratar do assunto.
Outro acadêmico cuja posição implicaria cuidar da qualidade das pesquisas no Brasil, mas que também usufrui as facilidades dos veículos de baixa credibilidade, é Jailson Bittencourt de Andrade, professor da Universidade Federal da Bahia, conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e consultor do CNPq, da Capes, da Fapesp e da Finep. Andrade — que não respondeu ao pedido de entrevista da reportagem — assina como coautor um texto publicado na Scientific Research Publishing (Scirp) ao preço de 1 000 dólares (pouco mais de 2 500 reais). Essa editora chinesa é a mesma usada pelo egípcio Mohamed El Naschie, pretenso contestador da teoria da relatividade, cuja trajetória de derrapagens foi apontada pela Natureem 2008. Em 2010, a revista publicou outro texto alertando para as práticas antiéticas da própria Scirp, que copiava artigos respeitáveis de outros sites e os adicionava às páginas de seus mais de 200 jornais com o propósito de fazê-los parecer confiáveis. Além disso, a Scirp acrescentava ao seu quadro editorial nomes vistosos que nem sabiam de sua existência.
Esse recurso, aliás, é mais frequente no submundo acadêmico do que se poderia supor. Dele se vale, para ficar em apenas mais um caso, a editora Multidisciplinary Digital Publishing Institute (MDPI) — onde também constam artigos de Andrade. O fundador da MDPI, Shu-Kun Lin, tem seu nome associado a casos de corrupção e plágio.
A editora diz estar baseada na Suíça e até cobra pela publicação de artigos na moeda local, no entanto grande parte de seus funcionários fica na China. O biólogo e geneticista italiano Mario Capecchi, que ganhou o Nobel de Medicina em 2007, foi incluído no conselho editorial da MDPI sem ser consultado. Nessa problemática editora, que cobra 1 600 francos suíços (4 200 reais) para veicular artigos científicos, foi publicado o paper “Diagnóstico molecular e patogênese da hemocromatose hereditária”, que tem entre seus autores o pró-reitor de pesquisa da USP, José Eduardo Krieger. “Em trabalhos escritos a muitas mãos, nem sempre minha vontade prevalece”, justifica-se Krieger.
Pode-se alegar que muitos pesquisadores acabam publicando artigos em veículos sem rigor acadêmico induzidos pela pontuação que eles ostentam no Qualis. O nigeriano African Journal of Agricultural Research aparece com o conceito A2 na classificação da Capes, ou seja, apenas um degrau abaixo da nota máxima, A1, atribuída à Science e à Nature. Pois bem: o jornal virou motivo de chacota na Indonésia no início deste ano após aceitar um documento científico copiado da web e com o nome dos verdadeiros autores substituído pelo de dois artistas da região.
A fim de testar a idoneidade de editoras do modelo open access com perfil duvidoso, o biólogo e jornalista John Bohannon enviou um manuscrito científico falso a 304 periódicos sediados em dezenas de países. Um deles foi a publicação brasileira Genetics and Molecular Research(GMR), de propriedade do biólogo Francisco Alberto de Moura Duarte, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo e presidente da Fundação de Pesquisas Científicas de Ribeirão Preto. Além de o trabalho conter erros crassos, os biólogos que o assinavam (Roboodee Agnor, Annyassee Barree e Bellakah Motoday) foram simplesmente inventados, assim como o Instituto de Medicina Wassee, do qual diziam fazer parte, supostamente sediado na Eritreia. Das 304 editoras, 157 caíram na armadilha do americano e publicaram o artigo falso. A GMR, que tem jornais classificados com as notas A1 e A2 no Qualis, estava entre elas. “O jornalista agiu de má-fé”, defende-se Duarte. A experiência de Bohannon, que rendeu uma longa reportagem na Science no ano passado, lembra um escândalo que ficou conhecido como Caso Sokal. Em 1996, o físico e matemático Alan Sokal, da Universidade de Nova York, enviou propositalmente um artigo-embuste para a revista pós-moderna Social Text, vinculada à Duke University Press. A ideia era comprovar que um ensaio cheio de meias verdades e teorias sem sentido poderia ser publicado se fosse bem escrito e exaltasse as posições ideológicas dos editores. O paper afirmava, entre outras coisas, que o número pi, uma das mais antigas constantes da geometria, não passava de um produto do pensamento ocidental, ou seja, se tivesse sido descoberto por chineses, não seria igual a 3,1416 — e ainda assim foi publicado sem restrições. Simultaneamente com a veiculação da Social Text, Sokal anunciou a fraude em outra publicação, a Lingua Franca, e descreveu o artigo como “um pasticho de jargões esquerdistas, referências aduladoras, citações pomposas e completo nonsense”.
Embora os efeitos perversos dos periódicos científicos desleixados sejam ainda pouco discutidos — e até pouco conhecidos — no Brasil, em outros países já provocaram terremotos acadêmicos. Em fevereiro deste ano, Ibrahim Gashi, reitor da Universidade de Pristina, em Kosovo, foi parar na imprensa por divulgar artigos em várias revistas suspeitas. Seu objetivo era acelerar um processo de promoção. Os estudantes da universidade se revoltaram e precisaram ser contidos pela polícia. A situação só se acalmou quando Gashi renunciou. Caso similar ocorreu naquele mesmo mês na Universidade da Islândia, onde Þórhallur Örn Guðlaugsson, professor associado de administração, que ganhava bônus por texto publicado, foi suspenso após a descoberta de que se valia de veículos sem credibilidade para divulgar seus artigos.
A revolta dos estudantes de Kosovo é completamente justificável. Ao usufruir os serviços de um jornal, revista ou site acadêmico que tudo publica mediante pagamento, o pesquisador contribuiu para uma cadeia de equívocos — que pode até influenciar na escolha de uma universidade bem posicionada num ranking de instituições de ensino superior baseado, em parte, na produtividade do corpo docente. Tal tipo de distorção, infelizmente, já alcança o Brasil. Na análise da Thomson Reuters, empresa com a maior base de dados sobre trabalhos científicos no mundo, o país galgou onze posições, entre 1993 e 2013, no ranking das nações que produzem a maior quantidade de estudos — hoje ocupa o 13º lugar.
Se esses estudos fossem de boa qualidade, teriam impacto em outro levantamento, o da revista britânica Times Higher Education. Trata-se do mais respeitado ranking internacional de universidades, que leva em conta treze indicadores para elencar as 500 melhores instituições de ensino superior do mundo. A excelência das pesquisas é o item que mais influencia a classificação. Há anos que apenas duas universidades brasileiras figuram entre as 500 e, de 2011 a 2014, tanto a Universidade de São Paulo (USP) como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) perderam posições — a USP caiu 35 e a Unicamp, 38. Diz o editor Phil Baty, responsável pelo levantamento da Times Higher Education: “O Brasil não deve se preocupar em aumentar o volume de suas publicações, mas, sim, focar em estudos de alto impacto que ampliem os limites de nossa compreensão do mundo”. Em outras palavras, as instituições acadêmicas do país precisam não perder de vista que veículos científicos de segunda só publicam artigos de segunda. E, com eles, a ciência não vai a lugar algum.
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