TENTÁCULOS
A participação popular junto à administração pública não é nada de novo. Constituía, desde 1980, uma das ideias-força de Franco Montoro, a se realizar por meio da descentralização. Para Montoro, “descentralizar é colocar o governo mais perto do povo e, por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente, mais democrático”.
Montoro ponderava que não se mora na União nem no Estado, mas no município, razão por que a população local deve, por melhor conhecer seus problemas e soluções, participar dos órgãos comunitários a serem ouvidos pela administração no diagnóstico da situação e na sugestão de caminhos a serem trilhados. A seu ver, tudo o que puder ser decidido e realizado pelo bairro, pelo município, pela região não deve ser absorvido pela administração superior, vindo a facilitar a participação popular, motivo pelo qual descentralização e participação se imbricam: uma acompanha a outra, permitindo que Estado e sociedade se aproximem.
Montoro não ficou apenas no plano do discurso, pois deu efetividade às suas ideias, desconcentrando competências e fiscalização, como ocorreu, dentre tantos exemplos, na municipalização da merenda escolar, com repasse de recursos para tanto e a criação de Conselhos Municipais da Merenda Escolar, compostos por representantes da prefeitura, da Câmara Municipal, da Secretaria de Educação, da Associação e Pais e Mestres e de produtores e fornecedores locais. No governo paulista, criou, por exemplo, o Conselho da Condição Feminina, o Conselho Estadual da Comunidade Negra, os Conselhos Comunitários de Segurança Pública.
Com a participação de especialistas, já na década de 1930 se instituíra o Conselho Nacional da Saúde, depois paulatinamente democratizado com maior número de representantes da sociedade, antes mesmo da Constituição de 1988. No plano nacional, em 1985 surgiu o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e o Conselho Nacional do Consumidor.
A Constituição de 1988 consagrou, em diversos artigos, a participação da sociedade no auxílio à formulação de políticas públicas e na fiscalização da gestão, como se pode verificar: 1) no artigo 10.º se assegura a participação de trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que haja discussão e deliberação de seus interesses profissionais ou previdenciários; 2) no artigo 187 se prevê que a política agrícola seja planejada e executada com a participação efetiva do setor da produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, além dos setores de comercialização, armazenamento e transporte; 3) no artigo 198, III, se estabelece a participação da comunidade no âmbito dos serviços públicos de saúde.
Depois da atual Constituição federal muitos conselhos se formaram, tal como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), ou tiveram ampliada a participação da sociedade, conforme se deu no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Assim, a participação da sociedade em diversos organismos para apresentar à administração a realidade a ser enfrentada, com sugestão de soluções, acompanhamento e controle de sua efetividade, é fato consagrado na realidade política brasileira.
O que espanta, então, no recente Decreto n.º 8.243, da presidente Dilma Rousseff, ao instituir a Política Nacional de Participação Social, não é o reconhecimento da participação da comunidade como auxiliar da administração, mas a tentativa de engessar essa participação à Presidência da República, mais especificamente, à sua Secretaria-Geral. Pelo decreto, verifica-se que a absolutamente necessária descentralização e a independência de organismos integrados e formados pela comunidade se esboroam, com o aparelhamento da sociedade civil, pois ficam sujeitos a um processo de centralização e de dominação da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Malgrado se estatua ser diretriz a autonomia das organizações da sociedade civil, na verdade, submete-se sua participação à Secretaria-Geral da Presidência, à qual incumbirá orientar todos os órgãos da administração sobre a forma de implementar a contribuição da sociedade civil, bem como avaliar tal contribuição, consoante preceitua o artigo 5, parágrafos 1.º e 2.º. Para tanto cria-se, por decreto, de forma inconstitucional, um órgão, o Comitê Governamental de Participação Social, coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência, incumbido de a assessorar no monitoramento e implementação da Política de Participação Social.
No mais, o decreto disciplina totalmente como devem funcionar as diversas instâncias da participação social – conselhos de políticas públicas, comissões de políticas públicas, conferências nacionais, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência pública, consulta pública, ambiente virtual de participação – que ficarão subordinadas à Presidência da República, retirando desses órgãos da sociedade civil sua vitalidade e sua espontaneidade ao burocratizá-los e submetê-los à orientação e avaliação de sua atuação por parte do comitê centralizador ligado à Secretaria-Geral da Presidência.
Tal centralização e o controle das instâncias de participação defluem claramente do disposto no artigo 8.º do decreto, segundo o qual compete à Secretaria-Geral da Presidência “realizar estudos técnicos e promover avaliações e sistematizações das instâncias e dos mecanismos de participação social definidos neste Decreto”. Dessa maneira, as instâncias de participação ficam sugadas de sua liberdade ao serem sempre avaliadas pela Secretaria-Geral da Presidência e ao deverem obedecer à sistematização por ela imposta.
Em suma, a propalada Política de Participação Social não passa de um instrumento que, em vez de arejar a administração em contato com a sociedade, sujeita os organismos vitais da sociedade ao crivo constante do poder central, atraindo a sociedade para aprisioná-la nos tentáculos de uma insaciável sede de domínio.
Miguel Reale Jr. é advogado, professor titular aposentado da faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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