Símbolo da luta pela reforma agrária no início da década de 1980, a
Fazenda Primavera, em Andradina, 630 quilômetros a noroeste de São
Paulo, está se transformando em símbolo do fracasso do programa de
assentamentos conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra). Há cerca de 30 anos, a mobilização de trabalhadores
rurais, sindicatos e membros da Igreja Católica levou o governo federal,
então chefiado pelo general João Batista Figueiredo, a desapropriar a
fazenda de 3.676 hectares e dividir a terra entre as 346 famílias que
ali viviam. Hoje, muito poucas dessas famílias ali continuam. A grande
maioria preferiu vender suas terras ou arrendá-las às três usinas de
cana que operam na região, como mostrou reportagem do O Estado de São
Paulo (23/2).
Esse fato retrata uma das maiores dificuldades que o programa de
assentamentos de trabalhadores rurais vem enfrentando: a fixação dessas
pessoas nas terras que receberam. Sem apoio técnico adequado para seu
trabalho, sem acesso a financiamentos, sem infraestrutura, sem dispor de
mecanismos eficientes de comercialização da produção, quando há
excedente comercializável, essas famílias não têm conseguido obter renda
suficiente para lhes assegurar o bem-estar que as estimule a continuar
seu trabalho. Havendo alternativa, elas a escolhem.
A disputa entre as usinas por áreas para a expansão do plantio da
cana-de-açúcar resultou na rápida valorização das terras. Estima-se que,
em dez anos, o preço do alqueire (24,2 mil m²) passou de R$ 8 mil para
R$ 50 mil. Poucos assentados resistiram às propostas de venda ou
arrendamento. Segundo algumas estimativas, 70% dos lotes não estão mais
com os assentados originais.
O Incra tem enfrentado muitos problemas com a venda irregular de
terras em assentamento para reforma agrária. O trabalhador rural
assentado recebe uma concessão para usar e explorar a terra a ele
destinada, isto é, não pode vendê-la. Somente depois de dez anos, e se
tiver cumprido diversas exigências legais, alcançará o direito de
vendê-la ou de realizar outras operações, como arrendamento, repasse ou
aluguel.
O Incra tem retomado na Justiça muitas terras comercializadas
irregularmente pelos antigos assentados. Em seguida, repassa-as para
outras famílias. Mas nada pode fazer em casos como os dos antigos
assentados da Fazenda Primavera.
Esses assentados passaram muitos anos enfrentando dificuldades para
assegurar sua sobrevivência com o fruto de seu trabalho na terra, antes
de se firmarem como produtores rurais e alcançarem a condição de
emancipados, isto é, com o direito de negociar as áreas que receberam do
Incra.
Muitos dos que venderam ou arrendaram suas terras reclamam da falta
de assistência do Incra, da falta de apoio para o financiamento da
produção, da insuficiência da cobertura de seguro, das dificuldades para
o pagamento dos empréstimos bancários, entre outros problemas.
São problemas comuns a outros assentamentos, onde as dificuldades
podem ser ainda mais agudas do que as relatadas pelos antigos assentados
da Fazenda Primavera e podem, quando chegar a época da emancipação dos
assentados, resultar na venda das terras em prazo menor do que o
observado no caso paulista.
Cada vez mais carente de base de apoio para suas ações de natureza
nitidamente política, o Movimento dos Sem-Terra (MST) vê nessa nova
realidade um risco para sua sobrevivência. Quanto mais antigos
assentados deixarem a terra em troca de melhor alternativa de obtenção
de renda, menor será sua massa de manobra. Para tentar evitar seu
enfraquecimento, que a melhora das condições de vida dos trabalhadores
rurais tornará inevitável, o MST quer obrigar os assentados a continuar
na situação em que estão, como meros concessionários de terras públicas,
impedindo-os de alcançar a condição de emancipados, como propôs à
presidente Dilma Rousseff. A proposta violenta o direito de, decorrido
determinado período e cumpridas determinas condições, o assentado
escolher outra forma de vida.
O Estado de S.Paulo
Assentados vendem terra ao agronegócio
Posse definitiva da terra e valorização dos lotes estimulam comercialização de áreas rurais, segundo estudo de pesquisador da Unesp
23 de fevereiro de 2014
Roldão Arruda e José Maria Tomazela - O Estado de S.Paulo
ANDRADINA - Após assentar 1,2 milhão de famílias em
sucessivos programas de reforma agrária, o Brasil agora enfrenta o
desafio cada vez maior de segurá-las na terra. A nova realidade agrária
do País, com a crescente valorização do preço da terra, ao lado das
persistentes dificuldades dos assentados para elevar o seu nível de
renda, torna cada vez mais atraente a venda do lote obtido com a
reforma.
A Fazenda Primavera, em Andradina, na região noroeste de São Paulo, a
630 quilômetros da capital, é um exemplo do que está ocorrendo. No
início da década de 1980, aquela propriedade tornou-se um símbolo da
luta pela reforma agrária, com intensa mobilização de famílias de
trabalhadores rurais, sindicatos e setores da Igreja Católica.
Pertencente ao grupo J.J. Abdalla, ela acabou sendo desapropriada pelo presidente João Baptista Figueiredo. Seus 3.676 hectares foram divididos entre as 346 famílias que viviam na área. Elas também receberam na mesma época o título de propriedade.
Passados 34 anos, resta pouca coisa do assentamento e da proposta original de desconcentrar a terra. Segundo estimativa feita pelo pesquisador Rafael de Oliveira Coelho dos Santos, que está concluindo uma dissertação de mestrado na Unesp sobre aquele projeto, 70% dos lotes originais já foram vendidos às três usinas de cana-de-açúcar que operam na região e disputam palmo a palmo novas áreas de plantio.
Em decorrência dessa pressão, o preço da terra não para de subir. Em dez anos, o valor do alqueire (24,2 mil m²) saltou de R$ 8 mil para R$ 50 mil.
Com esses preços, a pressão é cada vez maior. "Até a esposa, os filhos, os genros caem em cima do dono e ele não resiste à pressão do dinheiro", diz o assentado Valdeci Rodrigues Oliveira, de 67 anos, do grupo dos que ainda não venderam o lote em Andradina.
Na semana passada, ao rodar pelas estradas de terra vermelha que cortam a área, a reportagem do Estado só viu canaviais. Entre os que ainda não negociaram a terra, é comum a prática de arrendá-la, integral ou parcialmente, para as usinas.
O caso de Andradina chama a atenção de estudiosos da reforma agrária, movimentos sociais e órgãos do governo. Teme-se que o ocorrido ali se repita em outros assentamentos, numa escala capaz de comprometer toda a reforma.
O temor é inflado por causa do envelhecimento das áreas de reforma e do aumento da concessão de títulos de propriedade. De acordo com normas legais, quando chega ao lote, o beneficiário da reforma agrária tem apenas uma concessão de uso. Após um período de dez anos, porém, passa a ter direito ao título de propriedade, podendo então negociar a terra.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) diz não ter números sobre esse tipo de negócio. Sabe-se, no entanto, que 640 assentamentos já estão emancipados ou em fase de emancipação. A área emancipada é aquela em que mais da metade dos ocupantes do lote já tem o título de propriedade.
O número não é alto, considerando a existência de quase 9 mil assentamentos. O que preocupa é que deve aumentar rapidamente a partir de agora, uma vez que grande parte dos assentamentos do País nasceu nos últimos 15 anos. Outro fator preocupante é que a renda dos assentados continua baixa. Na avaliação de Santos, o pesquisador da Unesp, esse fator é decisivo.
Legislação
Foi por causa disso que líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) foram pedir à presidente Dilma Rousseff a mudança da lei. No encontro que mantiveram com ela, dias atrás, no Planalto, sugeriram que o assentado tenha apenas a cessão de uso da terra. Pode repassá-la para os filhos, mas nunca vender. "Sem isso haverá certamente uma reconcentração da propriedade", diz Alexandre Conceição, da direção do MST.
Dilma mostrou interesse, mas não há movimento no governo para mudar a lei.
A fórmula sugerida pelo MST já é usada em São Paulo, em assentamentos em áreas de terras devolutas, nos quais os assentados recebem apenas a permissão de uso. A pressão para a mudança dessa lei, porém, aumenta. No ano passado, durante um seminário sobre o tema, promovido pelo Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), parte dos participantes defendeu a concessão do título de propriedade.
O presidente do Itesp, Marco Pilla, é contrário à mudança. "É preciso dar garantia jurídica às famílias, mas sem repetir o erro da Fazenda Primavera."
Segundo o MST, um dos principais focos de pressão para a venda de terras está na Amazônia, que concentra metade das famílias da reforma. Isso ocorre, na avaliação de Conceição, por causa da questão ambiental. Sem espaço para desmatar, empresas voltam a atenção para assentamentos emancipados.
Pertencente ao grupo J.J. Abdalla, ela acabou sendo desapropriada pelo presidente João Baptista Figueiredo. Seus 3.676 hectares foram divididos entre as 346 famílias que viviam na área. Elas também receberam na mesma época o título de propriedade.
Passados 34 anos, resta pouca coisa do assentamento e da proposta original de desconcentrar a terra. Segundo estimativa feita pelo pesquisador Rafael de Oliveira Coelho dos Santos, que está concluindo uma dissertação de mestrado na Unesp sobre aquele projeto, 70% dos lotes originais já foram vendidos às três usinas de cana-de-açúcar que operam na região e disputam palmo a palmo novas áreas de plantio.
Em decorrência dessa pressão, o preço da terra não para de subir. Em dez anos, o valor do alqueire (24,2 mil m²) saltou de R$ 8 mil para R$ 50 mil.
Com esses preços, a pressão é cada vez maior. "Até a esposa, os filhos, os genros caem em cima do dono e ele não resiste à pressão do dinheiro", diz o assentado Valdeci Rodrigues Oliveira, de 67 anos, do grupo dos que ainda não venderam o lote em Andradina.
Na semana passada, ao rodar pelas estradas de terra vermelha que cortam a área, a reportagem do Estado só viu canaviais. Entre os que ainda não negociaram a terra, é comum a prática de arrendá-la, integral ou parcialmente, para as usinas.
O caso de Andradina chama a atenção de estudiosos da reforma agrária, movimentos sociais e órgãos do governo. Teme-se que o ocorrido ali se repita em outros assentamentos, numa escala capaz de comprometer toda a reforma.
O temor é inflado por causa do envelhecimento das áreas de reforma e do aumento da concessão de títulos de propriedade. De acordo com normas legais, quando chega ao lote, o beneficiário da reforma agrária tem apenas uma concessão de uso. Após um período de dez anos, porém, passa a ter direito ao título de propriedade, podendo então negociar a terra.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) diz não ter números sobre esse tipo de negócio. Sabe-se, no entanto, que 640 assentamentos já estão emancipados ou em fase de emancipação. A área emancipada é aquela em que mais da metade dos ocupantes do lote já tem o título de propriedade.
O número não é alto, considerando a existência de quase 9 mil assentamentos. O que preocupa é que deve aumentar rapidamente a partir de agora, uma vez que grande parte dos assentamentos do País nasceu nos últimos 15 anos. Outro fator preocupante é que a renda dos assentados continua baixa. Na avaliação de Santos, o pesquisador da Unesp, esse fator é decisivo.
Legislação
Foi por causa disso que líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) foram pedir à presidente Dilma Rousseff a mudança da lei. No encontro que mantiveram com ela, dias atrás, no Planalto, sugeriram que o assentado tenha apenas a cessão de uso da terra. Pode repassá-la para os filhos, mas nunca vender. "Sem isso haverá certamente uma reconcentração da propriedade", diz Alexandre Conceição, da direção do MST.
Dilma mostrou interesse, mas não há movimento no governo para mudar a lei.
A fórmula sugerida pelo MST já é usada em São Paulo, em assentamentos em áreas de terras devolutas, nos quais os assentados recebem apenas a permissão de uso. A pressão para a mudança dessa lei, porém, aumenta. No ano passado, durante um seminário sobre o tema, promovido pelo Instituto de Terras de São Paulo (Itesp), parte dos participantes defendeu a concessão do título de propriedade.
O presidente do Itesp, Marco Pilla, é contrário à mudança. "É preciso dar garantia jurídica às famílias, mas sem repetir o erro da Fazenda Primavera."
Segundo o MST, um dos principais focos de pressão para a venda de terras está na Amazônia, que concentra metade das famílias da reforma. Isso ocorre, na avaliação de Conceição, por causa da questão ambiental. Sem espaço para desmatar, empresas voltam a atenção para assentamentos emancipados.