O governo federal não poderia aceitar a escravidão dos médicos cubanos que recebem 10% do que ganham os demais estrangeiros
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
A Constituição Federal consagra, no artigo 7º, inciso XXX, entre os
direitos dos trabalhadores: "XXX "" proibição de diferença de salários,
de exercício de função e de critério de admissão por motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil".
O governo federal oferece para todos os médicos estrangeiros "não
cubanos" que aderiram ao programa Mais Médicos um pagamento mensal de R$
10 mil. Em relação aos cubanos, todavia, os R$ 10 mil são pagos ao
governo da ilha, que os contratou por meio de sociedade intitulada
Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S/A. Pela
cláusula 2.1 "j" desse contrato, receberia cada profissional no Brasil,
apenas 400 dólares por mês, depositando-se em Cuba outros 600 dólares.
Em face da cláusula 2.1 "n", deve o profissional cubano guardar estrita
confidencialidade "sobre informações não públicas que lhe sejam dadas".
Pela cláusula 2.2 "e", deve abster-se de "prestar serviços e realizar
outras atividades diferentes daquelas para que foi indicado", a não ser
que autorizado pela "máxima direção da missão cubana no Brasil". Não
poderá, por outro lado, "em nenhuma situação, receber, por prestação de
serviços ou realização de alguma atividade, remuneração diferente da que
está no contrato".
Há menção de vinculação do profissional cubano a um regulamento
disciplinar (resolução nº 168) de trabalhadores cubanos no exterior,
"cujo conhecimento" só o terá quando da "preparação prévia de sua saída
para o exterior". Na letra 2.2 "j", lê-se que o casamento com um não
cubano estará sujeito à legislação cubana, a não ser que haja
"autorização prévia por escrito" da referida máxima direção cubana.
Pela letra 2.2 "q", só poderá receber visitas de amigos ou familiares no
Brasil, mediante "comunicação prévia à Direção da Brigada Médica
Cubana" aqui sediada. Pela letra "r", deverão manter "estrita
confidencialidade" sobre qualquer informação que receba em Cuba ou no
Brasil até "um ano depois do término" de suas atividades em nosso país.
Por fim, para não me alongar mais, pela cláusula 3.5, o profissional
será punido se abandonar o trabalho, segundo "a legislação vigente na
República de Cuba".
A leitura do contrato demonstra nitidamente que consagra a escravidão
laboral, não admitida no Brasil. Fere os seguintes artigos da
Constituição brasileira: 1º incisos III (dignidade da pessoa humana) e
IV (valores sociais do trabalho); o inciso IV do art. 3º (eliminar
qualquer tipo de discriminação); o art. 4º inciso II (prevalência de
direitos humanos); o art. 5º inciso I (princípio da igualdade) e inciso
III (submissão a tratamento degradante), inciso X (direito à privacidade
e honra), inciso XIII (liberdade de exercício de qualquer trabalho),
inciso XV (livre locomoção no território nacional), inciso XLI (punição
de qualquer discriminação atentatório dos direitos e liberdades
fundamentais), art. 7º inciso XXXIV (igualdade de direitos entre
trabalhadores com vínculo laboral ou avulso) e muitos outros que não
cabe aqui enunciar, à falta de espaço.
O governo federal, que diz defender os trabalhadores --o partido no
poder tem esse título--, não poderia aceitar a escravidão dos médicos
cubanos contratados, que recebem no Brasil 10% do que recebem os demais
médicos estrangeiros!!!
Não se compreende como as autoridades brasileiras tenham concordado com
tal iníquo regime de escravidão e de proibições, em que o Direito cubano
vale --em matéria que nos é tão cara (dignidade humana)--, mais do que
as leis brasileiras!
A fuga de uma médica cubana --e há outros que estão fazendo o mesmo--
desventrou uma realidade, ou seja, que o Mais Médicos esconde a mais
dramática violação de direitos humanos de trabalhadores de que se tem
notícia, praticada, infelizmente, em território nacional. Que o
Ministério Público do Trabalho tome as medidas necessárias para que
esses médicos deixem de estar sujeitos a tal degradante tratamento.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 79, advogado, é professor emérito
da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército e da Escola Superior de Guerra