Quando ainda era candidato, Lula deu a melhor definição sobre a posição do seu futuro governo na questão dos transgênicos: “liberar é burrice”. Que se passa no governo para que o presidente, no caso da edição de uma MP, faça aquilo que antes chamou de burrice?
O Presidente da República, quando ainda candidato, deu a melhor definição sobre a posição do seu futuro governo na questão dos transgênicos: “liberar é burrice”. Nestes próximos dias o Presidente poderá assinar uma medida provisória (MP) com o conteúdo do substitutivo do Senador Ney Suassuna ao projeto de lei (PL) de Biossegurança aprovado na Câmara. Ocorre que este PL tem como base uma proposta assinada pelo próprio presidente e que foi amplamente debatida dentro do Ministério antes de ser enviada ao Congresso. Que se passa no governo para que o presidente faça aquilo que antes chamou de burrice?
O argumento avançado pelo porta-voz da presidência, André Singer, de que o substitutivo representa um amplo consenso e que, portanto, deve ser adotado pelo governo é de uma grosseria política assustadora. O “amplo consenso” no Senado se opõe a uma fortíssima maioria da Câmara que aprovou o PL por mais do dobro dos votos. É, no mínimo, ignorar a posição de uma Casa do Legislativo Federal assumir o substitutivo do Suassuna como a posição vitoriosa neste tema.
A atitude aparentemente incoerente do governo no debate deste PL de Biossegurança fica ainda mais estranha quando se sabe que a mobilização pelo voto no substitutivo foi assumida pelo Ministro Aldo Rebelo e pelo líder do governo no Senado, Aloísio Mercadante. O governo mobilizou o Senado para derrubar o seu próprio projeto de lei, aprovado na Câmara contra o voto da bancada ruralista e do lobby da empresa multinacional de biotecnologia Monsanto!
O governo mudou de posição no intervalo da tramitação do PL entre a Câmara e o Senado? Se o fez não foi de forma transparente nem participativa, pois a Ministra Marina Silva foi surpreendida pela atitude dos articuladores políticos do governo no Senado. A ministra considerava, com boas razões, que a posição do governo era aquela discutida na Comissão Interministerial que envolveu onze Ministérios e foi oficializada com a assinatura do presidente ao encaminhar o projeto ao Congresso.
É verdade que as incoerências já tinham começado a se manifestar no próprio debate na Câmara onde o Ministro Aldo Rebelo, então líder do governo naquela casa, preparou um substitutivo contrário ao projeto assinado pelo presidente. Este substitutivo, entretanto, foi abandonado pela base governamental na Câmara e a coerência com a proposta original restabelecida.
O governo já tinha cometido dois erros baseados em informações falsas quando emitiu as MPs 113 e 131, em Março e Setembro de 2003, respectivamente. Na primeira o governo acreditou que toda a safra de soja estava contaminada com transgênicos plantados clandestinamente e que para cumprir a legislação e decisões judiciais vigentes teria que queimar toda a soja produzida no país. Dado falso. Na safra 2002/2003 apenas 4 milhões (no máximo) em um total de mais de 50 milhões de toneladas estavam contaminadas e este volume se concentrava no Estado do Rio Grande do Sul. Na segunda o governo acreditou que os agricultores gaúchos não dispunham de sementes não transgênicas de soja para plantar a safra 2003/2004 quando havia cerca de 250 mil toneladas de mais de 40 variedades convencionais disponíveis para aquele Estado.
A justificativa do governo para liberar a comercialização da safra 2002/2003, em flagrante violação das posições anteriores do PT e do próprio candidato Lula e da legislação vigente era a famosa “herança maldita” do governo anterior, inflada com avaliações incorretas sobre a amplitude do problema. Na liberação do plantio 2003/2004 foi o dado falso sobre a falta de sementes. É escandalosa uma explicação tão falsa que só pode demonstrar que o presidente e seus principais assessores foram manipulados ou que estavam tentando enganar o público. Os dados sobre a disponibilidade de sementes estavam acessíveis na internet para verificação de qualquer um.
A história das posições do governo no tema dos transgênicos mostra que houve uma mudança envergonhada do presidente e do chamado “núcleo duro”, de defensores do princípio da precaução e da necessidade de estudos de impacto ambiental e dos riscos para a saúde do consumidor em defensores da liberação indiscriminada destes produtos. Esta posição não foi assumida abertamente pela resistência da Ministra Marina Silva e, secundariamente, dos Ministros Humberto Costa e Miguel Rossetto.
O trágico nesta mudança de posição foi que ela não se deu por uma confrontação entre os argumentos complexos envolvendo aspectos científicos, ambientais, de saúde, de mercado, de economia da produção, de agronomia. A conversão se deu por razões mais comezinhas, vinculadas a uma opção cega pelo agronegócio representado no governo pelo Ministro da Agricultura. O governo sequer escutou os argumentos de que esta opção pode ser um tiro no pé das exportações agrícolas. O agronegócio é a favor dos transgênicos por razões imediatistas e falseadas por circunstâncias peculiares que não têm a ver com vantagens reais nem no médio prazo.
O debate sobre os riscos dos transgênicos tem implicações estratégicas que o governo não quis escutar. Sequer o fato de que os consumidores e agricultores europeus se posicionam maciçamente contra estes produtos foi levado em conta. O Presidente Lula afirmou que mudou sua posição por “razões científicas”, mas ele só escutou as razões dos cientistas defensores dos transgênicos. O Presidente ignora o fato de que os próprios cientistas do Food and Drug Administration, do governo americano, levantaram vários problemas sobre a segurança destes produtos para os consumidores e que a decisão de liberação dos transgênicos nos EUA foi em franca oposição às razões destes especialistas.
As implicações de uma liberação indiscriminada dos transgênicos terão efeitos de longo prazo e o governo dá mostras de uma total irresponsabilidade na forma em que vem tratando o assunto.
Jean Marc von der Weid é coordenador do Programa de Políticas Públicas da AS-PTA e membro do CONDRAF/MDA
Fonte: Agência Carta Maior
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