Não, responde José Sarney Filho, com o artigo ‘Evolução responsável’
Antes de ser um salto no escuro do injusto, do inconstitucional e do desprezo às gerações futuras, a Lei de Biossegurança deve ser modelo que garanta previsibilidade jurídica e isonomia, condições da ordem jurídica do Estado democrático e condicionantes do progresso da ciência
José Sarney Filho, advogado, deputado federal pelo PV-MA, é o líder do partido na Câmara dos Deputados. Foi ministro do Meio Ambiente (Governo FHC).
No campo dos OGMs, o Brasil, hoje, vive um duplo dilema: é possível assegurar o progresso científico e tecnológico sem pôr em risco a saúde da população e o meio ambiente?
Na perspectiva constitucional e moral, seria justificável estabelecer regimes jurídicos de exceção em favor de poderosos segmentos econômicos, contrariando procedimentos aplicáveis à generalidade dos brasileiros?
A resposta a essas questões indicará não só o modelo de ordem jurídica democrática que queremos para o país, como também o grau de respeito aos valores, objetivos e princípios estabelecidos na nossa Constituição, em especial o tratamento isonômico a situações iguais ou similares.
Já de início, quero ressaltar que o Partido Verde não é, por uma simples questão de cego dogmatismo principiológico, contra os transgênicos.
Nossa preocupação é de outra ordem: opomo-nos à posição de alguns atores econômicos, e até governamentais, que vêem, nas determinações constitucionais, regras que valem para uns, mas não para outros.
Da padaria ao posto de gasolina, do aterro sanitário à rodovia, da fábrica de alimentos ou medicamentos às incorporações imobiliárias, de todos se espera o cumprimento da legislação de proteção do meio ambiente e do consumidor, inclusive no que se refere ao adequado licenciamento por órgão ambiental competente.
Obrigações que incidem sobre qualquer atividade econômica, mas que não seriam aplicáveis aos OGMs. Aqui, diz-se, os riscos ambientais devem ser previamente identificados pela CTNBio!
Não devemos esquecer que, no Brasil, o critério adotado na escolha do órgão responsável pelo licenciamento de uma atividade em absoluto não é se lhe cabe regular ou não regular a atividade em questão, mas, sim, se integra o Sisnama (Sistema Nacional de Meio Ambiente).
A ser diferente, como justificar, então, não dar ao Ministério da Saúde, o maior especialista em riscos sanitários, o poder de identificar riscos ambientais em empreendimentos e atividades por ele disciplinados ou controlados?
Por que negar ao Ministério dos Transportes, conhecedor como ninguém das repercussões de toda ordem da abertura de vias, a possibilidade de fazer o mesmo com rodovias, hidrovias e aeroportos?
A concentração do licenciamento ambiental em um órgão integrante do Sisnama visa, numa palavra, conferir independência, transparência e credibilidade ao processo de avaliação dos riscos ambientais.
Excepcionar essa regra, adotada no Brasil pelo menos desde 1981, é, além de desnecessário e injustificável, abrir um precedente que certamente não se esgotará com os OGMs. Este, não custa lembrar, ainda é o país onde o provisório vira definitivo, o excepcional transfigura-se no ordinário.
Isonomia constitucional, valorização dos órgãos ambientais e reconhecimento do princípio da precaução. Este o compromisso que orientou a Câmara dos Deputados ao aprovar, com o apoio do Partido Verde, a Lei de Biossegurança, agora sob apreciação do Senado.
Fruto de ampla e exaustiva negociação entre os deputados, governo federal e Estados, representantes empresariais e ONGs, equilibrado, o texto busca compatibilizar a necessidade do desenvolvimento econômico e tecnológico com o respeito à Constituição.
Não dificulta, nem muito menos inviabiliza, a produção e comercialização de transgênicos. Tampouco impõe moratória ou outro tipo de restrição peremptória aos transgênicos, como defendiam alguns.
Simplesmente exige aquilo que se espera de qualquer atividade ou empreendimento econômico: licenciamento ambiental, por órgão integrante do Sisnama.
Nossas políticas públicas, principalmente em área estratégica como a dos transgênicos, não podem ser erigidas sobre as bases impróprias do casuísmo e da visão acanhada de curto prazo.
Não queremos que o Brasil volte a ser o país da ordem constitucional simbólica ou mutável ao sabor dos ventos do autoritarismo econômico, onde os direitos são para poucos e as obrigações, inclusive a de respeitar o devido processo ambiental, aplicam-se aos que não têm voz nem poder.
A boa pesquisa científica e o avanço tecnológico não demandam privilégios nem postulam aberrações jurídicas, com o fito de protegê-los das regras que disciplinam a vida dos outros cidadãos.
Antes de ser um salto no escuro do injusto, do inconstitucional e do desprezo às gerações futuras, nossa Lei de Biossegurança deve chamar a atenção como um modelo que garanta previsibilidade jurídica e isonomia, ambas condições básicas da ordem jurídica do Estado democrático e condicionantes do progresso da ciência.
Só assim a manifestação do Congresso receberá o respeito da sociedade, pacificará os litígios judiciais e permitirá o fortalecimento da tecnologia nacional, para orgulho e benefício dos brasileiros, os de hoje e os de amanhã. Será pedir demasiado?
Fonte: Jornal da Ciência
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