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sexta-feira, fevereiro 13, 2004

O cipoal dos transgênicos, artigo de Washington Novaes

Já se vê, portanto, que é enorme o potencial de conflito que poderá desaguar no nível mais alto da administração pública e de novo na Justiça
Washington Novaes é jornalista especializado em meio-ambiente (wlrnovaes@uol.com.br). Artigo publicado em 'O Estado de SP':
Não se pode nem se deve minimizar o valor da resistência da ministra Marina Silva e de sua equipe, que conseguiram reduzir os desacertos, injuridicidades e ofensas à Constituição constantes do primeiro relatório sobre o projeto da lei de biossegurança, aprovado na semana passada pela Câmara dos Deputados com base em novo relatório do deputado Renildo Calheiros.
Qualquer que seja, entretanto, a sorte do projeto no Senado, é praticamente certo que não escapará ao cipoal confuso e pouco adequado em que foi metido este tema. Nem à trajetória de fatos consumados, com a prorrogação, até 2005 inclusive, da autorização para plantio e comercialização da soja transgênica - antes que se defina o que o país quer nessa matéria.
Não bastasse, porém, o emaranhado já produzido pelo tema dos alimentos transgênicos, insistiu-se em um projeto que abarcasse todo o campo da biossegurança - e agora se enfrenta outra controvérsia candente, no campo da clonagem. Na fase de audiências públicas sobre o projeto, o autor destas linhas, convocado, insistiu em que se fizesse a separação. Agora, é difícil qualquer solução que não levante novas controvérsias.
Tentou-se, com o projeto, agradar a todas as partes. Conseguiu-se desagradar a todas. Sem resolver as questões fundamentais.
Sem que nem sequer se esboçasse qual é a estratégia econômica do país: ser o único grande produtor mundial de grãos com garantia de não serem modificados, como desejam os mercados europeus (a Bélgica acaba de rejeitar a canola transgênica; Escócia e país de Gales continuam refratários aos transgênicos), asiáticos e até o brasileiro (73% dos consumidores não os querem, segundo a pesquisa mais recente)? Produzir transgênicos e não transgênicos, em áreas rigorosamente definidas e separadas, para assegurar a certificação? Ou ser apenas mais um dos produtores de alimentos transgênicos, concorrendo com os grandes que já estão no mercado - EUA, Argentina e Canadá -, mas que parecem estar perdendo mercado rapidamente?
O mais grave é que não se conseguiu criar condições para afastar o conflito jurídico que já estava e continua sobre a mesa. A ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo procurador- geral da República, Cláudio Fonteles, não deixa dúvida quanto à ilegalidade da legislação baixada pelo governo federal - e mantida e até prorrogada neste projeto - que liberou o plantio de soja modificada em 2003.
Ela viola a Constituição, por dispensar a aprovação do plantio de estudo de impacto ambiental (artigo 225, parágrafo 1.º, inciso IV); gera um conflito com o Judiciário, na medida em que passa por cima de duas sentenças judiciais de primeira e segunda instância em vigor, que exigem estudo de impacto e a rotulagem dos produtos transgênicos; anula a competência do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que representa toda a sociedade e aprovou resolução também exigindo o estudo prévio de impacto; derroga o Código Penal, ao legalizar o plantio e comercialização de sementes contrabandeadas; e joga por terra o princípio da precaução, que o Brasil se obrigou a seguir, tanto na Declaração do RJ (1992) quanto em convenções internacionais (biodiversidade, principalmente).
Mas não é só. O projeto aprovado na Câmara atribui caráter conclusivo aos pareceres da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, na parte que se refere a experiências científicas - como se nestas não houvesse risco, ou a Comissão tivesse o dom da onisciência (quando a própria SBPC, na gestão anterior, sugeriu uma 'moratória de cinco anos para os transgênicos').
Além do mais, quando o Ministério do Meio Ambiente achar necessário o estudo prévio de impacto ambiental antes de autorizar o plantio de uma variedade transgênica, terá (artigo 13, parágrafo 2.º do projeto aprovado pela Câmara) 120 dias para dar seu parecer.
Pergunta-se: como pode um órgão, em quatro meses, avaliar se um plantio oferece ou não risco ao meio ambiente, mesmo que já disponha de 'estudos ou esclarecimentos oferecidos pelo empreendedor'? Como testar as conseqüências no meio ambiente, na biodiversidade, aí incluída a microfauna do solo, agentes polinizadores, a possibilidade de deriva genética?
O risco é ainda maior quando se lembra que, se a soja não tem 'parentes' próximos na biodiversidade brasileira, o algodão e o milho - que deverão ser as próximas etapas - têm. E aí os riscos serão muito maiores.
Sem falar em que o agrotóxico usado com a soja transgênica nem sequer está liberado para o chamado uso pós-emergente.
E que permanece sem definição o problema dos conflitos federativos: o Paraná já proibiu o plantio e a comercialização da soja transgênica; o Acre, na semana passada, seguiu o mesmo caminho; produtores e processadores de soja de Goiás não querem a soja transgênica (há projeto em tramitação na Assembléia), não só porque têm vantagens comerciais com o produto não modificado nos mercados europeus, como porque não há uma variedade transgênica adaptada ao clima, solo e biodiversidade do Centro-Oeste.
E ainda há mais: o Ministério da Agricultura entende que, pelo projeto aprovado na Câmara, o Conselho Nacional de Biossegurança (15 ministros) poderá aprovar o cultivo comercial, mesmo que o Ministério do Meio Ambiente o desaprove; já o MMA entende o contrário - se houver qualquer veto (o que inclui o Ibama, órgão licenciador), estará suspenso o processo de liberação.
Já se vê, portanto, que é enorme o potencial de conflito que poderá desaguar no nível mais alto da administração pública e de novo na Justiça.
Não é um panorama confortável o que se desenha à frente. Nem parece ser o solo firme em que precisa pisar um país confrontado, neste momento, com graves questões estratégicas, das quais dependerá seu desenvolvimento econômico e social. E sua adequação ambiental, quando tudo aponta para a centralidade dessa área, nos novos e difíceis tempos que batem à porta.


Fonte: O Estado de SP

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